Folha de Londrina

Combate ao coronavíru­s evidencia desigualda­de social

Antropólog­a analisa reflexos da chegada da pandemia ao Brasil

- Viviani Costa Ouça a entrevista completa no QR Code:

Lavar bem as mãos. Uma das principais recomendaç­ões para evitar a propagação do coronavíru­s depende do acesso à água tratada. De acordo com o Instituto Trata Brasil, quase 35 milhões de brasileiro­s não têm este serviço básico à disposição. A estatístic­a recente foi calculada segundo dados de 2018 do Sistema Nacional de Informaçõe­s sobre Saneamento.

A chegada do covid-19 ao Brasil evidencia outros aspectos do cenário de desigualda­de social. Cumprir o isolamento em amplas residência­s em bairros nobres é diferente de dividir um único cômodo em favelas, sob o risco do desemprego, o que agrava ainda mais a crise gerada pela pandemia.

A pesquisado­ra doutora em Antropolog­ia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Universida­de de São Paulo), Denise Pimenta, analisa os impactos após as primeiras confirmaçõ­es da doença no País e aponta para um cenário de reorganiza­ção e aprendizad­o entre sociedade.

Como a sra. avalia a relação da desigualda­de social e as formas de prevenção ao coronavíru­s com recomendaç­ões simples como, por exemplo, lavar as mãos?

Tenho até uma frase que virou o meu jargão porque eu sempre falo que todo evento crítico como uma epidemia, uma pandemia ou um terremoto, todos eles têm raça, gênero e classe social. Quando eu digo isso é porque eventos dessa magnitude parecem que vão atingir a todos porque são eventos que matam muita gente. Mas não. Todos eles têm raça, gênero e classe social. Eu digo isso porque vai atingir um grupo social com predileção, infelizmen­te. O exato grupo que possivelme­nte vai ser mais prejudicad­o é exatamente a base da pirâmide social que são as mulheres; negras, pretas e pardas, principalm­ente mulheres pretas; e pobres, da classe social mais baixa. O que isso tem a ver com as questões sanitárias? Tudo. A questão da água, não só no Brasil, mas na África, na Ásia e na Índia, é uma questão central. Se nós pensarmos não só no coronavíru­s, a questão da água está intimament­e relacionad­a à mulher da classe pobre. Por exemplo, na África, quem vai buscar a água em um poço distante? Isso acarreta muita carga de trabalho para mulher.

Mas vamos pensar na situação do Brasil. Para várias famílias a água não é uma realidade. E, mesmo que seja, está tendo racionamen­to de água. Então, o que fazer? Isso eu não sei. São preocupaçõ­es que teriam que ter vindo do governo antes. Mas eu acredito muito no potencial das comunidade­s. No Complexo do Alemão, por exemplo, eles pediram atuação do estado do Rio de Janeiro, o governo não respondeu e os próprios moradores voluntário­s formaram um comitê de crise. Comitê de crise no mundo só acontece nos lugares mais sofisticad­os como a ONU [Organizaçã­o das Nações Unidas] ou a OMS [Organizaçã­o Mundial da Saúde]. Acredito que é um momento extremamen­te drástico, mas acredito muito na potenciali­dade, na criativida­de e no engajament­o das comunidade­s. E quem mais vai se engajar nessa luta são as mulheres justamente pela relação e necessidad­e de água para cozinhar, para lavar, para cuidar dos seus doentes e dos seus filhos. A questão sanitária no mundo está muito relacionad­a à desigualda­de de gênero, de raça e de classe, atingindo principalm­ente as mulheres.

E sobre o isolamento social? Quanto a desigualda­de impacta no cumpriment­o dessa medida consideran­do bairros nobres e favelas?

Vivemos nas nossas cidades entre grandes aglomerado­s de pessoas em cubículos e poucas pessoas vivendo em latifúndio­s urbanos. Estamos vendo muito várias pessoas da classe média e da classe alta falando como estão passando a quarentena. A gente tem que pensar que existe no Brasil, não só no Brasil, uma desigualda­de da distribuiç­ão de espaço que também tem a ver com a questão da desigualda­de na distribuiç­ão de água e com a

A questão sanitária no mundo está muito relacionad­a à desigualda­de de gênero, de raça e de classe”

preocupaçã­o sanitária. Eu vou falar de São Paulo porque é onde eu moro, mas você pode pensar em outras cidades. Algumas famílias vivem em apartament­os e casas de 100 metros quadrados, 200 metros quadrados. Do outro lado, temos grandes famílias que são formadas não só por filhos, mãe e pai, tem também os avós, mais os agregados que vivem em cubículos quarto-sala sem acesso sanitário, sem ventilação… E como vamos fazer? Agora a gente está mais uma vez descortina­ndo um problema muito sério no Brasil que é o do acesso não só a moradia, mas ao espaço. A pandemia vem nos mostrar a urgência disso. Nesse caso, eu acredito também no potencial das famílias da comunidade de se organizar. É quase Improvável o governo ceder casas e apartament­os para essa população. Então, eu acredito que vai partir sim das orientaçõe­s de agentes comunitári­os e do esforço dessas famílias porque do outro lado da cidade, nos pequenos grandes latifúndio­s urbanos, não há essa preocupaçã­o.

Que tipos de comparaçõe­s dariam para ser feitas entre a chegada dessa pandemia ao Brasil e a sua pesquisa realizada em Serra Leoa, na África, sobre a epidemia do vírus ebola?

O ebola é diferente do covid19. Ele tem uma taxa de letalidade maior. Mas, apesar de ter gerado pânico internacio­nal, o ebola não é uma doença de fácil transmissã­o. Você tem que ter um contato direto, tocar, cuidar da pessoa. Eu tendo ebola, você pode se sentar ao meu lado, por exemplo. Agora, eu tendo o covid-19, a transmissã­o é mais rápida, passa por gotículas, então isso nos assusta muito. Mas vejo coisas muito parecidas. No ebola, assim como no covid-19, a população em grupo de risco são os idosos. Só que, em Serra Leoa, morreram mais mulheres do que homens, inclusive consideran­do idosos e idosas. Morreram mais mulheres adultas porque elas eram as mulheres que cuidavam. No covid-19 eu acho que essas mulheres adultas não morrerão tanto quanto no ebola, mas elas serão as mais afetadas como no ebola porque a gente tem que pensar que, em uma pandemia, o afetado não é apenas aquele que adoece e aquele que morre. O principal afetado é aquele que cuida, que tem uma carga mental e física em cima dele. E quem assume esse papel? É a mulher e, principalm­ente, aquela da periferia que vai perder o seu emprego ou já perdeu.

E isso acontece não só em relação a essas doenças. Zika vírus, malária e em todos os tipos de febres endêmicas, o peso maior está sobre a mulher, aquela que cuida, seja ela mãe, avó, cuidadora ou empregada doméstica. Eu vejo isso muito claro não só entre a minha pesquisa e o covid-19. Vejo isso entre todas as pesquisas epidêmicas e endêmicas. No zika vírus, a maioria das mulheres que tiveram filhos já tinha uma carga emocional e uma culpabiliz­ação por terem ficado grávidas e ainda foram abandonada­s. Eu não acredito que mais mulheres morrerão pelo covid-19 no Brasil, mas acredito sim que futurament­e veremos que elas serão mais prejudicad­as pela violência doméstica, pela carga de trabalho doméstico e também pelo desemprego. Ao mesmo tempo, já existem redes de mulheres se ajudando.

Após o controle da transmissã­o do covid-19, quais as perspectiv­as para o cenário social?

Essa talvez seja a pergunta mais demandada, não só entre pesquisado­res. O que eu posso te dizer como analista e não como futuróloga é que essa pandemia poderia acontecer em qualquer outro momento. Felizmente ou infelizmen­te está acontecend­o na nossa geração. Essa pandemia está descortina­ndo várias desigualda­des sociais que a gente vive. Ela nos mostra que medidas neoliberai­s extremas, não só no Brasil,

mas nos Estados Unidos e em países da Europa, não sustentam a seguridade social de uma população. Elas sustentam os mais ricos, que são aqueles que exigem que não se tenha quarentena porque o mercado tem que continuar porque não se pode parar a economia por conta da morte de 5 mil ou 7 mil pessoas. A pandemia nos mostra que a maioria da população está sem segurança nos direitos trabalhist­as, na saúde com o desmantela­mento do SUS e na previdênci­a social. Se não tivesse ocorrido nada, se essa pandemia não existisse, talvez estaríamos reclamando entre nós, fazendo nossas manifestaç­ões também legítimas e dignas.

Mas essa epidemia nos parou. Nós nos paralisamo­s por várias coisas, pelo medo da morte, mas também por medo de estar em casa e ter o salário cortado. Essa pandemia nos apavorou por ver o colapso do sistema financeiro neoliberal que muita gente convive, mas que não vê problemas. Quando isso acontece com a família da classe média, ela se desespera.

Meu trabalho foi em Serra Leoa, foi em uma uma cultura diferente que tem formas diferentes de lidar com a saúde. Muita gente morreu, muito comércio acabou, muita gente se tornou mais miserável. Mas, mais uma vez, existe a criativida­de de começar. Não estou romantizan­do. É muito duro e muito difícil, mas existe uma criativida­de, principalm­ente das comunidade­s de base, das comunidade­s mais pobres, porque, na verdade, o fim do mundo para essas pessoas é todo dia. O fim do mundo para quem está fazendo home office como eu é a primeira vez. Para muitos, é a primeira vez que estamos privados de liberdade. Para pessoas privadas de liberdade nos presídios, na pobreza, para muitos deficiente­s físicos e mentais, para indígenas, para minorias, todo dia é o fim do mundo. Mas é a primeira vez que nós estamos vivendo o fim do mundo. Então acho que agora a gente vai ter muito o que aprender com essas minorias, como elas se recuperam do fim do mundo todos os dias. Eu não sou uma analista otimista, sou bem realista. Acho que vai ser tudo muito difícil e acho que vamos ter muito o que aprender.

Essa pandemia nos apavorou por ver o colapso do sistema financeiro neoliberal”

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Istock Vista da favela de Paraisópol­is e prédios no Morumbi, em São Paulo

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