Folha de Londrina

O passado e o futuro

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Em tempos de incertezas sanitárias e políticas, tem sido muito comum a convicção de que “sei que estou certo e os outros estão errados”. Mas seria bom que se pensasse que também os outros têm certeza de que estão certos e que eu estou errado. Ou seja, podem ser relativas as verdades de cada um de nós. O sol nasceu hoje, é uma verdade. Mas o sol nascerá amanhã, já é uma verdade relativa.

Faço essa meditação de quarentena, porque noto que além do surto do coronavíru­s, somos pacientes de um surto de atividade de bolas de cristal. O confinamen­to que nos deixa distantes das conversas com os amigos, das palavras que nos chegam aos ouvidos no elevador, nos balcões das lojas, no ônibus, é um solilóquio que nos deixa ouvindo apenas as nossas frases e as das redes sociais que frequentam­os - e os verbos das frases nunca estiveram tanto no tempo futuro. O presente já nos exauriu e saltamos em fuga para o futuro, onde já nos contaram que haverá um “novo normal”.

Os profetas já revelaram como será o nosso novo trabalho, como degustarem­os o novo jantar, quais serão as novas diversões. Imagino se as pessoas que escrevem artigos sérios sobre isso, ou concedem sérias e longas entrevista­s sobre o novo normal, se estão realmente falando sério ou se estão se divertindo com a nossa ingenuidad­e. Já previram que chegará logo uma vacina e até quem vai ganhar a próxima eleição presidenci­al americana. Quanto mais parecido com Nostradamu­s é o futurólogo, mais atenção passa a merecer da mídia que sente necessidad­e de mudar de assunto, porque ninguém mais aguenta tanta notícia igual.

Mas o futuro real que nos espera é o tempo presente dos desemprega­dos, das empresas fechadas, das contas públicas arrombadas, das novas corrupções viróticas. Um futuro com acusadoras perguntas sobre o passado: se tudo isso salvou vidas ou foi inútil. No ano passado, a média diária de mortes, segundo dados do Registro Civil, foi de 3.367; neste ano, com cresciment­o da população e a Covid, pouco foi aumentada: 3.609 mortes por dia. Vamos ter um futuro de julgamento­s sobre o que passou; sobre o que poderia ter sido feito e não foi; e sobre o que se fez e que não deveria ter sido feito. Na França, famílias já estão entrando na Justiça para responsabi­lizar autoridade­s que teriam omitido tratamento na fase inicial da doença. Mesmo sem bola de cristal, é possível prever que esses últimos meses serão muito discutidos nos próximos. Resta saber se teremos aprendido alguma coisa para o futuro.

Alexandre Garcia é jornalista

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geral@folhadelon­drina.com.br

“Vamos ter um futuro de julgamento­s sobre o que passou; sobre o que poderia ter sido feito e não foi”

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