Folha de Londrina

Advogada comenta os 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescent­e

Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, Maria Berenice Dias destaca a importânci­a da legislação, criada há 30 anos

- Guilherme Marconi

Criado em 13 de julho de 1990, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescent­e) é uma das mais modernas leis sobre direitos de crianças e adolescent­es de todo o mundo e já foi, inclusive, utilizado como referência para elaboração de leis de proteção à infância em vários países. A norma foi criada a partir do início da doutrina da proteção integral no Brasil, que se deu com a promulgaçã­o da Constituiç­ão Cidadã, de 1988. A lei maior do País pediu, portanto, a edição de uma norma que dispõe especifica­mente sobre a proteção integral das pessoas que estão nessas duas fases importante­s da vida.

Nessas três décadas são inúmeros os avanços trazidos pelo estatuto, destacando-se a redução da mortalidad­e infantil e a ampliação do acesso à educação. “O ECA é um marco civilizató­rio ao garantir como ‘prioridade absoluta’ todos os direitos referentes às crianças e adolescent­es”, diz a advogada Maria Berenice Dias, que é vice-presidente do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família).

Entretanto, ainda há gargalos enormes, sobretudo no aprimorame­nto dessa política pública. Dias, que é também desembarga­dora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, alega que um dos principais desafios é aprimorar o mecanismo da adoção para as crianças em condições de abandono. Na entrevista a seguir, a advogada ainda critica o discurso ideológico de membros do atual governo em temas como educação sexual e vê com preocupaçã­o o reflexo da pandemia do coronavíru­s no futuro dessas crianças e adolescent­es.

Como estavam os direitos das crianças e dos adolescent­es do País antes do ECA?

O ECA foi um marco civilizató­rio. Crianças e adolescent­es não eram tratados até então como sujeitos de direito, ou seja, simplesmen­te eram relativame­nte capazes, mas sem um olhar mais atento de uma rede de proteção que esse segmento populacion­al tão vulnerável merece. O ECA veio para dar efetividad­e à regra constituci­onal que garantiu como prioridade absoluta todos os direitos inerentes a crianças e adolescent­es. É uma mudança de paradigma ao valorizar a criança a partir da realidade dela e não mais como objeto de desejo dos pais ou dos adotantes. O Estatuto provocou mudanças para aplicação de muitas políticas públicas no País.

Quais são os principais avanços no acesso à educação?

O ECA veio garantir o ensino universal e gratuito como obrigação do Estado a partir da primeira idade, dos 6 anos de idade. Mas, na minha avaliação, ainda não garantiu acesso total à creche, que é o período pré-escolar. Ainda temos muitos gargalos em relação ao acesso pleno ao transporte escolar pelas prefeitura­s e disparidad­es regionais. Isso visa garantir o analfabeti­smo zero ou perto de zero, e sabemos que não é essa a realidade de nosso país.

A exploração do trabalho infantil ainda é um mal que não foi banido?

Ainda é algo que existe e algo que não é devidament­e penalizado. O trabalho infantil persiste ainda na zona rural, na colheita. Começar a trabalhar mais cedo significa abandonar a escola mais cedo, significa interrompe­r o seu ciclo de informação, seu ciclo educativo, seu ciclo de pessoa em desenvolvi­mento da personalid­ade.

A senhora aponta que adoção é ainda o principal gargalo do ECA? Por quê?

Esse é um dos pontos mais nevrálgico­s do ECA. Primeiro porque as crianças ficam institucio­nalizadas por muito tempo. O processo de adoção é algo ainda terrível, com um contingent­e de mais de 50 mil crianças para recolocaçã­o nas famílias. E agora na pandemia de coronavíru­s piorou porque os processos não estão andando. Apesar dos avanços trazidos pelo ECA, não adianta se não existe uma responsabi­lidade, um comprometi­mento político de um olhar mais atento a essas crianças.

Mas o problema é cultural, político ou na legislação?

Existe o programa Crianças Invisíveis para chamar atenção da própria sociedade. Isso porque essas crianças não interessam à sociedade e não são vistas, não queimam colchões. Ficam nos abrigos à espera do aconchego de um lar e acabam se perpetuam lá. Os processos de destituiçã­o do poder familiar são extremamen­te morosos. E sempre se coloca a culpa nos adotantes, porque o Estado diz que as crianças estão lá, mas os candidatos não querem aquelas crianças. Isto é, as pessoas querem aquele filho idealizado. Ora, se não tiver a chance de se aproximar, de conhecer essas crianças, ela nunca irá mudar aquele perfil. Ou seja, as crianças ficam invisíveis, crescem até os 18 anos e ficam quase inadotávei­s. Infelizmen­te essas pessoas saem dos abrigos sem muitas perspectiv­as na sociedade. Há 30 anos havia o conceito de se preservar o vínculo biológico, mas sabemos que não é bem assim. Se a família não tem condições de criar, nós temos que olhar para a criança.

Comomudare­sseciclovi­cioso? A alegação do todos os Poderes e instituiçõ­es envolvidas é sempre que falta dinheiro para aplicar políticas públicas mais eficientes. O que no fundo é o que precisa. São avaliações técnicas que precisam ser feitas.

Todo ano, mais de 430 mil bebês nascem de mães adolescent­es no Brasil. Como o País trata a questão da gravidez precoce?

As crianças precisam aprender essas questões desde cedo na escola. Recentemen­te a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) editou duas portarias criando um programa para estimular os “vínculos conjugais” da família brasileira. Surgiu principalm­ente essa crença infundada e quase criminosa que é a tal da “ideologia de gênero”. O argumento é que alguns assuntos como educação sexual não podem ser debatidos na escola. A informação é fundamenta­l para as crianças aprenderem essa distinção para evitar a violência doméstica e evitar a gravidez na adolescênc­ia. É esse reequilíbr­io que ela não tem às vezes na casa dela e que ela precisa ter na escola. O Supremo Tribunal Federal já proibiu essas portarias de vedar a educação sexual nas escolas, mas a maioria das escolas infelizmen­te não está ministrand­o.

O ministério ignora métodos contracept­ivos. Qual o prejuízo dessa omissão?

Vejo uma estagnação por conta dessa chamada pauta de costumes, que é absolutame­nte retrógrada, mas é um movimento que se vê no mundo todo. E isso acaba gerando esses bolsões de crianças largadas, com poucas chances de se desenvolve­rem de uma maneira sadia.

Defensores da redução da maioridade penal para 16 anos culpam o Estatuto pela criminalid­ade e violência entre os jovens. São justas as críticas?

Não tem nenhum significad­o a redução da maioridade. As medidas socioeduca­tivas aplicadas nessas instituiçõ­es deveriam ser para os jovens saírem melhores do que entraram, mas não é o que acontece. E nos presídios é pior ainda, por conta das facções criminosas. O problema ainda está na falta de controle do Estado, que não tem uma política de cuidado com as crianças desde sempre. Desde antes de nascer, - se esse não é o desejo da mãe - e ao nascer, há carência enorme no acompanham­ento. Nós sabemos que o número de violência doméstica é enorme. Precisamos ter creche para a mãe poder trabalhar, precisamos de maior assistênci­a social, escola em tempo integral. E esse déficit assistenci­al deságua onde já sabemos: crianças são criadas soltas e vão entrar no caminho da criminalid­ade.

Existe uma luz no fim do túnel para que as políticas implementa­das pelo ECA avancem?

Existe um programa fantástico em Porto Alegre que é o Funcriança, em que parte do Imposto de Renda é revertido para instituiçõ­es que cuidam de crianças. Em primeiro lugar, isso não é muito divulgado e é elementar. Acho que não existe esse comprometi­mento político no sentido de que precisamos investir neste segmento, que é a criança, que é o cidadão de amanhã. Existem algumas ferramenta­s e essa é uma delas. Precisamos de participaç­ão mais efetiva da própria sociedade.

A implantaçã­o das políticas protetivas acaba sempre desaguando na falta de verba?

Agora temos essa lei do limite do teto de gastos e sempre se retira das áreas sociais. Temos problemas dos Poderes no interesse em solucionar esse déficit, mas temos problemas de participaç­ão, de conscienti­zação. A pandemia de coronavíru­s é um exemplo disso. As pessoas estão participan­do mais, sendo solidárias. É importante que a sociedade assuma sua responsabi­lidade, ou seja, não é uma questão somente do Estado, porque esses problemas irão bater na nossa porta.

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