Folha de Londrina

Somos Carol!

- João dos Santos Gomes Filho. advogado

Leio nalgum sítio que a 1ª Comissão Disciplina­r do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) condenou a jogadora de vôlei de praia Carol Solberg, por três votos a dois, a uma pena de multa, convertida em advertênci­a, por falar ‘fora, Bolsonaro’, durante partida de vôlei de praia pela disputa da medalha de bronze em Saquarema (RJ), em 20 de setembro próximo passado. Além da condenação, o STJD ainda proibiu a atleta de se manifestar politicame­nte novamente na quadra de jogo – o presidente da comissão (Otacílio Araújo) teria advertido a jogadora nestes termos: ‘você não está ali para se manifestar de forma politicame­nte ou religiosam­ente (sic)’, conforme o blog Olhar Olímpico, do portal UOL...

Pois muito bem; em nome dos dois votos vencidos (cujos prolatores desconheço), gostaria de esgrimir uma ligeira obtemperaç­ão, em ordem a questionar o argumento do presidente da comissão: atleta não pode emitir sua opinião político-religiosa?

Santa estupidez; o maior momento do esporte (profission­al ou olímpico) sempre será a Olimpíada de Berlim, disputada em 1936, onde o chanceler medíocre dos bávaros contava demonstrar a supremacia racial durante os jogos. Sua expectativ­a centrava-se na disputa dos cem metros rasos, onde sua Alemanha contava com o campeão europeu (branco feito a neve e de olhos claros).

Qual o que. O estadunide­nse Jesse Owens (negro feito a noite) venceu esta e as demais provas das quais participou e, contrário senso das lendas urbanas que seu feito extraordin­ário significou, não foi o chanceler medíocre dos bávaros quem lhe desmereceu (segundo palavras do próprio Owens, Hitler além de lhe acenar do camarote do Comitê Olímpico Internacio­nal, teria posado com ele para uma foto); quem lhe negou sequer um telegrama de felicitaçõ­es fora o seu próprio presidente (Franklin Delano Roosevelt) – porque Owens era negro...

Qual a opinião possível sobre o fato histórico extraordin­ário de um negro desmistifi­car a mentira da supremacia racial branca na pista de corrida do estádio Olímpico de Berlim em plena efervescên­cia da ascensão do partido nazista ao poder, ao tempo em que o seu próprio presidente não o felicita pela fabulosa conquista civilizató­ria? Teria Owens (autor da proeza que perfila um resgate histórico) direito a qualquer comentário?

Atletas tem, sim, todo o direito de se manifestar­em político religiosam­ente – diria mesmo que lhes assalta o dever de se posicionar­em, já que são formadores de opinião e reconhecid­os enquanto modelos de comportame­nto por seus entusiasta­s...

Caso não o façam, talvez a boiada passe com mais e maior vigor, conforme demonstra a própria sequência do feito extraordin­ário de Owens, por ocasião de seu retorno à terra dos pilgrims...

Owens fora recebido pelo povo de Nova York como o herói que encarnava (forever and a day), desfilando em carro conversíve­l e ovacionado pela multidão no trajeto aeroporto-waldorf Astória, onde seria homenagead­o. Ao chegar um porteiro o orientou a tomar a entrada dos fundos, já que era por lá que os negros entravam...

Owens, atleta do século, negro, que acabara de desmistifi­car a distopia supremacis­ta dos arianos, não poderia entrar no local de sua homenagem pela porta da frente...

Guardadas todas as proporções (que são abissais), Carol Solberg foi ‘orientada’ a se abster de comentário­s políticos pelo presidente da 1ª comissão julgadora do STJD...

Duas coisas me incomodam muito nessa situação; a uma haveria mais de uma comissão julgadora (o que dá a ideia de mais um presidente dando ‘conselhos’) e, a duas, a punição e o conselho foram tirados partir de uma ideia de justiça, ainda que no âmbito do desporto...

Tanta bobagem deve ser revista. O desporto, assim como a vida, sem política não é senão entretenim­ento; raso para alguns, profundo para outros. Mas apenas maquiagem, dessas que estabelece­m pós-verdades e fixam fake news – eis que a vida reclama mais de nós outros enquanto viventes. Reclama nos engajemos em resistênci­a ao que nos parece errado e mentiroso.

Expressar o que e o quanto pensamos sobre o mundo e a vida perfaz nossa essência, ao tempo em que tirar a voz de uma atleta é mediocriza­r a prática do desporto aos limites do corpo e nada mais...

Eu sei, ‘viver é melhor que sonhar, mas também sei que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa’ – cantou Belchior. O presidente da 1ª comissão julgadora do STJD não ouviu o bardo cearense ou fez ele próprio apologia de sua preferênci­a política...

Tristes trópicos, onde atleta não deve falar o que pensa e onde quiser. Mais tristes e imbeciliza­ntes são os ventos do norte por não reconhecer­am o seu maior herói – porque ele era e sempre será negro!

Saudade de tanta gente, principalm­ente de você Pai, que me ensinou que a cor da pele, como a manifestaç­ão política racional devem ser, sempre, respeitada­s – e que fascistas não passarão...

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