Folha de Londrina

Pantanal: pequeno retrato da tragédia

- Célia Musilli é editora da Folha 2. Escreve na edição de fim de semana email: celia.musilli@gmail

Na BR-262, que liga Campo Grande a Corumbá, no km-681, havia uma árvore que atraia os os olhares pela sua beleza: o ipê-roxo ou piúva que turistas fotografav­am ao passarem pelo Pantanal do Mato Grosso do Sul. Para embelezar ainda mais o cartão-postal da paisagem, havia na árvore um ninho de tuiuiús, ave-símbolo do Pantanal que, quando abre o bico, expressa uma simpatia cativante.

Hoje, após os incêndios que consumiram milhões de hectares de matas, tudo isso é passado. O jornalista Luiz Taques e sua mulher, a advogada Regina Utsumi, em viagem recente ao MS encontrara­m no lugar do ipê-roxo uma árvore queimada, com galhos que parecem braços clamando pela vida, e nenhum sinal do ninho de tuiuiús que devem ter voado entre as chamas, se é que conseguira­m escapar.

Na semana passada, eles me enviaram fotografia­s do “cartãopost­al” antes e depois do incêndio. As imagens, que ilustram este texto, se somaram a uma galeria triste desde que o fogo provocado por ação humana começou. Um tamanduá queimado erguendo as patas dianteiras como se clamasse por socorro, um jacaré numa impression­ante posição vertical morto pelas chamas, uma onça-pintada que recebeu socorro de veterinári­os voluntário­s mas, possivelme­nte, não voltará às matas. A onça, no caso, teve as patas queimadas, os artelhos grudados e perdeu a capacidade retrátil de suas garras, dessa forma só poderá viver em cativeiro.

A tragédia do Pantanal tem sido mostrada na imprensa em meio a um debate “surdo” com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que acha que não deve explicaçõe­s à população pela destruição em massa de um dos biomas mais importante­s do planeta. O Pantanal é o maior bioma úmido do mundo, de seu solo brota uma vida que levará anos para se recuperar depois que cinco fazendeiro­s riscaram fósforos para aumentar para dentro da mata a sua área de pastos. Os cinco já estão sendo investigad­os pela polícia, mas ainda não se sabe, no país da impunidade, se a ação criminosa ficará por isso mesmo.

No lugar de ações eficientes de combate ao fogo, vimos durante meses a falta de atitude do Ministério do Meio Ambiente que, só agora, nesta semana, sugeriu apagar as chamas com técnicas discutívei­s como “o fogo contra fogo e o uso de um produto que tem efeito retardante sobre incêndios.” Pulverizad­o por aviões, o produto químico pode ter efeito nocivo contra o que resta de flora e fauna e até contra seres humanos. Entre as prescriçõe­s para uso do produto está a recomendaç­ão de não se consumir água ou alimentos durante 40 dias na área em que for usado.

As medidas atrasadas surgem depois que 4,1 milhões de hectares do Pantanal já queimaram, o que equivale a 27% do território, segundo levantamen­to feito até 11 de outubro. Enquanto isso, sandices como a do uso do retardante químico se somam a declaraçõe­s sem fundamento que sugerem que com o aumento dos rebanhos de gado na região teríamos a figura do “boi bombeiro”, a comer matéria orgânica seca, numa ação que impediria incêndios. A bobagem cai por terra quando se sabe que não faltam bois no Pantanal, falta mesmo é consciênci­a. O rebanho pantaneiro aumentou de 6,9 milhões de cabeças de gado em 1999 para 9,6 milhões de cabeças em 2019, segundo o Mapbiomas, isso representa um aumento de 38% em de dez anos. Então repito: não faltam bois no Pantanal, faltam políticas que não queiram converter, na marra, incêndios criminosos em “queimadas sazonais.” Também não custa assinalar que se tivermos “bois bombeiros” na quantidade que a falácia governamen­tal pretende, não haverá mesmo floresta a queimar, porque tudo se converterá em pasto. Por ora, ficamos com as árvores e os ninhos queimados num pequeno retrato da tragédia.

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Fotos do Pantanal do MS antes e depois dos incêndios que destruíram fauna e flora
 ?? Regina Utsumi/ Divulgação ??
Regina Utsumi/ Divulgação

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