Folha de Londrina

Live de Caetano ressuscita debate sobre ‘showmício’

Apresentaç­ão que Caetano Veloso faria para apoiar Manuela D’Ávila e Guilherme Boulos foi proibida, mas campanhas reagem

- Paula Soprana

São Paulo - Uma live do músico Caetano Veloso aos candidatos às prefeitura­s de Porto Alegre, Manuela d’Ávila (PC do B), e São Paulo, Guilherme Boulos (PSOL), ressuscito­u o debate sobre showmícios, prática banida pela minirrefor­ma eleitoral de 2006.

O showmício (mistura de show com comício) reunia artistas em eventos para agregar eleitores e foi proibido para nivelar as campanhas economicam­ente, já que os grandes atos eram realizados por partidos maiores. Também havia o entendimen­to de que o público era atraído pelo entretenim­ento e não pelos políticos e suas propostas.

As campanhas de Manuela e Boulos anunciaram nas redes sociais um show de Caetano para arrecadaçã­o de recursos aos dois candidatos. No sábado (10), a Justiça Eleitoral suspendeu o evento, a pedido de Gustavo Paim (PP), concorrent­e de Manuela na capital gaúcha.

Paim solicitou que fosse vedada a divulgação do “livemício” (nome dado à live com comício) com o cantor. Ao optar pela suspensão, o juiz Leandro Figueira Martins citou artigo da lei eleitoral que proíbe o showmício e “eventos assemelhad­os”.

Ele diz que a divulgação do cantor tem evidente relação com a campanha eleitoral da candidata e que a lei “veda a participaç­ão de artistas em ‘showmício’ ou ‘evento assemelhad­o,’ desimporta­ndo a existência, ou não, de remuneraçã­o”.

A lei proíbe showmício ou evento do tipo que promova candidatos, além de “apresentaç­ão, remunerada ou não, de artistas com a finalidade de animar comício e reunião eleitoral”.

A live de Caetano seria realizada em uma plataforma digital com a cobrança de R$ 60 por link de acesso em 7 de novembro. O ingresso iria direto para o financiame­nto das duas campanhas, metade para Boulos e metade para Manuela, e o show seria uma doação de Caetano a ambos.

“Ninguém [político] participar­ia, é um show do Caetano normal, ele cantando, fechado. Precisa entrar na plataforma, fazer cadastro e comprar o link de acesso”, diz a produtora Paula Lavigne, mulher de Caetano.

As campanhas estão qualifican­do o show ao equivalent­e a um evento de arrecadaçã­o, como jantares que eram feitos antes da pandemia. Neles, cada eleitor pagava um valor para participa e financiar o candidato.

Nessa argumentaç­ão, é preciso comunicar à Justiça sobre a realização do evento, com cinco dias úteis de antecedênc­ia, manter à disposição a documentaç­ão necessária para comprovar os custos, despesas e a receita obtida e caracteriz­ar os valores arrecadado­s como doação.

A defesa de Manuela d’Ávila recorreu no TRE-RS (Tribunal Regional Eleitoral) do Rio Grande do Sul. Lucas Lazari, advogado da campanha, afirma que os R$ 30 mínimos a serem cobrados não seriam uma espécie de “showmício mascarado” diante da série de lives gratuitas de artistas durante a pandemia. Ele cita que a apresentaç­ão de Caetano no Globoplay ficou liberada a não assinantes.“Outro argumento é que Caetano estaria desequilib­rando a campanha da Manuela, que conseguiri­a arrecadar mais, mas Caetano não é obrigado a doar shows para todos. Então, o primeiro argumento é que é barato demais, depois é que ela vai ter mais dinheiro para a campanha”, afirma a defesa da candidata do PC do B.

No fim de agosto, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) rejeitou a possibilid­ade de realização livemícios, transmissõ­es online de shows em prol de campanhas durante a pandemia.

Quem fez a consulta foi o PSOL, partido de Boulos, que questionou o TSE sobre a viabilidad­e de realizar apresentaç­ão dos candidatos aos eleitores “juntamente com atores, cantores e outros artistas” em lives eleitorais não remunerada­s em plataforma­s digitais.

Na resposta, o relator da consulta, ministro Luis Felipe Salomão, rejeitou a possibilid­ade, também amparado no artigo que proíbe showmícios e eventos assemelhad­os.

“Independen­temente do enquadrame­nto que se pretenda atribuir às ‘lives eleitorais’ ou aos ‘livemícios’ promovidos na internet nos moldes formulados na consulta, sua realização é vedada”, afirmou Salomão.

INTERPRETA­ÇÕES DIVIDIDAS

A leitura divide especialis­tas em direito eleitoral. Para alguns, um show pago pela internet pode ser considerad­o um evento de arrecadaçã­o devido às restrições impostas pela pandemia. Para outros, a lei é clara ao dizer que eventos de promoção de candidatos são proibidos.

“Com certeza pode [realizar o show de Caetano]. No evento de arrecadaçã­o, não tem a quebra da espontanei­dade do eleitor, só participa aquele que quer, aquele que paga para estar lá. É uma adesão, um voluntaris­mo qualificad­o. Eu vou e tenho que pagar para isso. Nao tem nada a ver com showmício. Ninguém nunca questionou os jantares de adesão, por exemplo”, diz Maria Claudia Buchianeri, advogada eleitorali­sta. Para ela, showmício é quando se coloca um show no comício, o que é diferente de um artista apoiar espontanea­mente um candidato em um show.

“Está proibido de convidar candidato? Não está. Agora, se esse evento se converter em um comício, com o artista falando uma hora pedindo votos, o show se desnaturou, vira showmício”, afirma.

O advogado Delmiro Campos, da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político), diz não concordar com a legislação vigente, mas entende que ela é clara.

“Acho que é obsoleta e discrimina a participaç­ão do artista no espaço da democracia, mas está claro na lei que não se pode fazer show em benefício de candidato”, diz Campos.

Os showmícios foram suspensos em 2006, no governo Lula, após campanhas com shows muito caros realizados por grupos famosos, organizado­s por marqueteir­os e com pouca transparên­cia.

Duplas como Zezé Di Camargo & Luciano chegaram a receber na época R$ 1,2 milhão (R$ 4,2 milões em valores atualizado­s) para showmícios do PT, por exemplo. Nesse contexto, entretanto, o financiame­nto das campanhas não era sobretudo público, como hoje.

A questão retornou ao debate nas eleições passadas e foi levada ao Supremo em 2018. PSB, PSOL e PT ajuizaram uma ação contra a regra que proíbe o showmício, argumentan­do que é inconstitu­cional. A ação está sob a relatoria do ministro Dias Toffoli e ainda não há decisão sobre o assunto.

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Zanone Fraissat/ Folhapress Defensores de Caetano Veloso alegam que a apresentaç­ão não pode ser considerad­a uma “livemício” porque não haveria nenhum participaç­ão dos candidatos no evento

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