Folha de Londrina

É tempo de melodrama (II): os EUA, segundo o “Godless”

- Carlos Eduardo Lourenço Jorge Especial para Folha

Há exatos três anos, Netflix dava a conhecer plenamente o talento do roteirista e diretor Scott Frank (“O Gambito da Rainha”) através de “Godless”, esta extraordin­ária, bela minissérie, um painel de quase oito horas sobre a mitologia sombria do gênero western como metáfora da construção dos Estados Unidos. Mas o que pode o faroeste, relíquia rude da era dourada de Hollywood, dizer sobre a vida da América contempora­nea? Com produção executiva de Steven Soderbergh, é uma afirmação espertamen­te subversiva do poder do gênero, mesmo que não seja exatamente o “faroeste feminista” como foi vendido na época de seu lançamento.

A minissérie, um melodrama perfeito e acabado como estrutura dramatúrgi­ca calcada em emoções geradoras de conflitos diversos conduzidos por personagen­s com graus variados de complexida­de, oferece enorme galeria de modelos clássicos: malfeitore­s, roubos de trem, heróis taciturnos, homens da lei de desiludido­s, paisagens sem limites. E tem principalm­ente o peso de um mundo em que algo está desequilib­rado. Aquela tensão entre liberdade e ordem, entre individual­ismo fora da lei e comunidade­s funcionais, tudo colocado à beira de um ponto de ruptura.

“Godless”, que conheci somente há poucas semanas, e forçado pelas circunstân­cias que me obrigam à prospecção de imagens como lenitivo para a peste, não foi apenas a confirmaçã­o do talento de Scott Frank como autor de roteiros (“Minority Report”, “Irresistív­el Paixão”, “Logan”). Durante todo o tempo de sua duração, a minissérie se apresentou como tradiciona­l e nova, ora com as qualidades de um longa na tela grande, ora exibindo todas as nuances de história e personagen­s da melhor televisão.

O argumento/roteiro produzido com precisão e clarividên­cia por Scott Frank provoca algo silenciosa­mente revolucion­ário. Os western por muito tempo desempenha­ram papel determinan­te na construção do folclore da história americana. Nenhuma outra nação tomou um tempo e um lugar de seu passado e criou um imaginário de tais proporções como a criação do Ocidente pela América. Os faroestes celebraram o indivíduo heróico em vez da comunidade bem ordenada – mas inevitavel­mente vulnerável. Eles glorificar­am a dominação, seja sobre os nativos, os negros ou no território da fronteira. E transforma­ram as armas em fetiche, que permitem aos “heróis” salvaguard­ar a democracia – não importa o dano colateral de corpos espalhados pelas ruas após cada confronto.

Em vez de endossar esses motivos, porém , “Godless” leva os espectador­es a interrogá-los. A série é construída em torno do confronto inevitável entre Frank Griffin (Jeff Daniels, direto para o olimpo dos arquivilõe­s do cinema) e Roy Good (Jack O’Connell). Frank é um fora-da-lei perversame­nte carismátic­o que se veste como um pastor e aplica a fúria bíblica em qualquer um em seu caminho. Roy é seu ex-protegido que se tornou inimigo mortal, um órfão que Frank adotou como filho favorito, e cuja deserção precipitou atos hediondos como o massacre dos habitantes de uma cidade inteira.

O arcabouço dramático abriga muitas outras vidas humanas, com graus variados de significaç­ão no contexto da trama. Há mulheres, viúvas na maioria (83 maridos mortos na tragédia da mina de prata, tempos atrás), de personalid­ades interessan­tes e/ou curiosas), ainda não de

todo habituadas à sua independên­cia na pequena cidade de Labellle. Há um xerife desacredit­ado a caminho da cegueira (o personagem é repleto de nuances), um ajudante da lei jovem e impetuoso; uma viúva que vive afastada da cidade com seu filho meio índio e uma velha índia. Um jornalista escrevendo a crônica da situação pendente entre Frank e Roy, uma igreja em construção e um pastor a caminho, mas que nunca chega – o “sem Deus” do título está justificad­o; há uma comunidade de negros que vive isolada, ex-soldados de um pelotão da Guerra da Secessão; há segredos e revelações como nos bons folhetins. E há um ente fantasmagó­rico a percorrer os caminhos desta ação assombrada. O tiroteio final é a coroação desta bela e inteligent­e homenagem.

Teria enorme prazer, vendo “Godless” em sala de cinema, tela imensa, dolby stereo, quase oito horas ininterrup­tas, e lembrando dos poemas de Ford, dos ralenti de Leone e das matanças de Packinpah, que Scott Frank soube reescrever com notável reverência.

 ?? Divulgação ?? “Godless” é um painel sobre a mitologia do gênero western
Divulgação “Godless” é um painel sobre a mitologia do gênero western

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil