Folha de Londrina

Sobre o tema da redação do Enem 2020

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Em 17 de janeiro aconteceu a primeira fase do Enem e o tema foi O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira. Parece-me que quem decidiu o tema tinha em mente o livro da excelente Daniela Arbex. Por meio do Holocausto Brasileiro, somos informados que aproximada­mente 60 mil seres humanos foram deixados para morrer (ou melhor dizendo, foram assassinad­os lentamente) no Colônia , o “centro psiquiátri­co” que funcionou em Barbacena no século passado e cujas instalaçõe­s eram asquerosas o suficiente a ponto de se mostrarem indignas mesmo para ratos de esgoto.

Ao se debruçar sobre as problemáti­cas envolvendo a loucura, o filósofo Foucault chegou à conclusão de que os hospícios serviam principalm­ente para apaziguar os corações daqueles que estavam do lado de fora, mas o Colônia nos mostrou que esse tipo de instituiçã­o também serviu como depósito de rejeitados. Lá se encontrava­m não somente os portadores de deficiênci­as mentais, mas também prostituta­s, epiléticos, alcoólatra­s, filhos e filhas deserdados, desafetos políticos, enfim, todos aqueles que não se encaixavam em grupos que eram tidos como normais.

Uma vez lá, eram submetidos ao frio, a fome, a sujeira, aos diferentes tipos de violências e, dentre eles, o esquecimen­to. A propósito, não eram de todo esquecidos, afinal, quando as almas lhe abandonava­m os corpos, suas carnes eram disputadas por centros de estudos médicos.

O Colônia foi fundado em 1903 e teve suas atividades encerradas somente na década de 1980. É relativame­nte curto o período que nos separa do “fim” daquele campo de concentraç­ão, portanto é válido refletir sobre as heranças que certamente foram deixadas por ele. Açougues que estripam o humanismo só existem em espaços onde as pessoas lhe são mais ou menos cúmplices. Devemos refletir sobre nossos preconceit­os, pois todos os temos e, uma vez que estamos todos condenados a solidaried­ade (caso não estivéssem­os, já teríamos nos matado uns aos outros), faz-se necessário reconhecer tanto a pluralidad­e quanto a diversidad­e humana.

Paulo Sérgio Micali Junior e Taiane Vanessa da Silva Micali,

historiado­res e professore­s em Londrina

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