Folha de Londrina

Quando os poetas morrem

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A poeta mineira Maria Lúcia Alvim morreu na última quarta-feira (3). Morreu um dia antes de outra poeta, Hilda Hilst, cujo aniversári­o de 17 anos de morte foi lembrado na quinta (4).

A vida segue empilhando mortes, ainda mais agora em tempos de pandemia, quando o espectro das perdas chega mais perto e ficamos contando nos dedos, de trás pra frente, quantos poetas já perdemos. A lista é grande.

Maria Lúcia Alvim (1932-2021) não é muito conhecida dos brasileiro­s, uma pena, mas é considerad­a por quem entende do assunto como uma das poetas mais importante­s da literatura nacional do século 20.

Mineira de Araxá (MG), era irmã dos também poetas Francisco Alvim e Maria Ângela Alvim. Até os anos 1980 publicou cinco livros: XX Sonetos (1959); Coração Incólume (1968); Pose (1968); Romanceiro de Dona Beja (1979); A Rosa Malvada (1980). Em 1989 escreveu “Vivenda”e seu último livro “Batendo Pasto” foi lançado pela Relicário Edições em agosto de 2020. Guilherme Gontijo Flores e Ricardo Domeneck fazem os textos de apresentaç­ão.

No lançamento do livro, Maria Lúcia deu uma entrevista à Tribuna de Minas (23/08/2020). O despojamen­to da poeta em relação à sua própria obra, a independên­cia de sua produção, estão em respostas marcantes: “Nunca gostei de grupos. Sempre fui uma pessoa só. Nunca fiz nada em grupos, a não ser com os amigos mais íntimos possíveis. Nunca fiz negócio. Nunca negociei coisa alguma. Em todos os sentidos da minha vida, nunca negociei.”

A poeta declara assim uma liberdade cada vez mais rara: a de não precisar de clubes que chancelem sua poesia. Sua liberdade também está implícita na disposição de “não negociar num mundo em que só existe a palavra comércio.”

Do título do livro, “Batendo Pasto”, salta ainda o sentido de liberdade que ela esclarece na última entrevista: “(o pasto) é o único lugar onde eu, estando em pé, não estando deitada como fico, sinto meus pés. É onde eu me sentia segura. A terra é o chão. Eu me sinto segura no chão dos matos, da natureza, não no chão das cidades.”

A vida de Maria Lúcia Alvim é a representa­ção do sentido libertário da poesia que ela soube tão bem incorporar e sintetizar numa declaração que deve soar como um alerta às prisões de construímo­s em torno da própria escrita, condiciona­da à aprovação e à desaprovaç­ão, à crítica e a aceitação. Sobre seus últimos dias ela disse: “O ritmo de vida que estou levando é mais próximo do de uma cigana, absolutame­nte livre, completame­nte desfeita de programaçõ­es sérias de vida. “

Depois de viver durante muito tempo no Rio de Janeiro, onde trabalhou em galerias de arte, a poeta passou seus últimos 11 anos em Juiz de Fora (MG), onde faleceu de covid-19, numa residência terapêutic­a para idosos, aos 88 anos.

Seus poemas falam por ela como o testemunho de uma vida livre e criativa.

“Manhã sem rusga/ pequeno depósito de agrura na poça/ exorbitei de alegria/ a abóbada celeste não dá vazão/ silos de silêncio/ ó ser astral/ o capim é minha grande reserva interior/ a esperança/ desleixo”

(Poema sem título de “Batendo Pasto, 2020)

 ?? istock ?? Célia Musilli é editora da Folha 2. Escreve na edição de fim de semana email: celia.musilli@gmail
istock Célia Musilli é editora da Folha 2. Escreve na edição de fim de semana email: celia.musilli@gmail

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