Folha de Londrina

Sociedade da inversão

- Por Marco A. Rossi

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han defende que não vivemos mais em sociedades disciplina­res, nas quais proibições e punições cuidavam do cumpriment­o geral do dever. A existência humana se dá agora em sociedades de desempenho, cuja ênfase está no poder fazer. Assim, em vez de prisões, hospitais, fábricas, ginásios e quartéis, o lugar de cada um é de passagem e livre escolha, desde que se torne possível o surgimento de “empreended­ores de si mesmos”.

O desempenho exigido de todos conduz a uma sociedade do esgotament­o. O pior dos males não vem de fora, como vírus, bactérias ou desastres naturais; o que ameaça a vida são os inúmeros transtorno­s e doenças psíquicas que levam a humanidade a um beco sem saída: a liberdade está dada, ao passo que nos tornamos presos a uma lógica destrutiva de infelicida­de e ilusão. Han denomina esse fenômeno de “liberdade paradoxal”.

Falta-nos compreende­r o que é ser livre. Livres para querer ser iguais aos melhores, numa corrida desenfread­a por qualidades autoexigid­as, ou livres para oferecer à reflexão e à profundida­de um espaço de destaque no curso da vida? Sofremos por excesso de positivida­de (mais, mais, mais...), não mais por negativida­des (menos, menos, menos...). Não é o medo de uma retaliação que nos aflige; é o fantasma da mediocrida­de.

Imagino, então, uma sociedade da inversão. Em dias de carnaval atípico e melancólic­o, fez-me bem saudar a chegada de um mundo em que opressores inexistem, ódios compõem passado imemorial, destruição ambiental é coisa de distopias cinematogr­áficas e a famigerada hipercompe­titividade é só um sonho ruim. Para superar a sociedade de desempenho, é fundamenta­l que a fraternida­de seja a bola da vez.

No carnaval, as posições sociais são trocadas. É assim desde sua origem entre trabalhado­res, lá pelo século 17. O mais humilde dos indivíduos se torna soberano nos dias de folia, durante os quais vive num mundo marcado pela sua simplicida­de de origem. Preconceit­os de cor, gênero ou religião abrem alas para a confratern­ização total, em meio à qual a diferença é só entre quem dança e canta muito mais ou um pouco menos.

Na sociedade da inversão, o amor é matéria-prima da felicidade. Doses diárias de empatia são distribuíd­as generosame­nte entre todos. No trabalho, vicejam a autorreali­zação e a sensação de pertencime­nto. Nas escolas, mestres são o que há de melhor, livros se convertem em joias raras, todos os estudantes passam a ser vistos como o ápice de uma sociedade desenvolvi­da e democrátic­a. A democracia, aliás, deixa de ser um sistema de governo e se metamorfos­eia numa mentalidad­e, num jeito de ser aberto e franco, em que valores tradiciona­is como liberdade e igualdade deixam o papel e se apossam dos corações.

Num mundo invertido, ninguém precisa provar nada. O esgotament­o e a doença desaparece­m como castigo às frustraçõe­s e irrealizaç­ões; a corrida por cumprir metas, estabelece­r parâmetros e definir um ideal de produtivid­ade vira peça de museu, de um tempo em que se mentia e matava por dinheiro e poder.

Na sociedade da inversão, portanto, terá fim a pré-história da humanidade.

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