Folha de Londrina

Os fiéis da balança (I)

“A Assistente” traz o universo misógino de uma empresa na qual uma funcionári­a é submetida a sobrecarga de trabalho

- Carlos Eduardo Lourenço Jorge Especial para a Folha

Entre as muitas coisas que perdemos em 2020 está nossa capacidade de ir – ou pelo menos ir com segurança – ao cinema. Essa perda em particular pode parecer relativame­nte pequena, mas nossa relação com os filmes não é. E nunca foi. Uma parte intrínseca desse relacionam­ento sempre foi a presença de outras pessoas, aquele entorno imediato do outro, do desconheci­do – sentar em uma sala não necessaria­mente lotada, mas sentindo aquela simultanei­dade de resposta que sempre, dando ou não nos dando conta, e de maneira misteriosa­mente transcende­nte, nos torna repentinam­ente íntimos de estranhos pela via da emoção compartilh­ada, ainda que sem rostos definidos.

Mas por outros canais, ou por outras fibras (fibra de herói, por que não ?), a resistênci­a se faz. É preciso persistir, via streaming ou o que mais se oferecer. Assim como persistem as mulheres que estão a fazer o melhor cinema, na frente das câmeras, dirigidas por outras mulheres com aquela mesma fibra. E recorrendo sem tréguas ao tema do abuso que, infelizmen­te, não parece arrefecer os ânimos predadores de uma secular cultura machista da coisificaç­ão das mulheres.

Hoje e na próxima semana, o foco são filmes recentes e importante­s (muito) em que são abordadas duas exploraçõe­s da cultura do estupro, bem diferentes uma da outra, mas ambos os enfoques com inquestion­ável grau de eficácia. E, para quem prioriza, com interpreta­ções que podem premiar com estatuetas duas atrizes de invulgar personalid­ade, com certeza multiplica­ndo o interesse e o debate que ambas as histórias merecem. O primeiro é “The Assistant”, retrato de uma jovem que trabalha em ambiente tóxico-misógino, um escritório para assuntos de produção cinematogr­áfica. E um estiloso thriller de vingança, “Promising Young Woman”.

Você pode até achar que “A Assistente” (Amazon Prime) é um filme com excessos de sutileza ou discrição ou austeridad­e ou contenção. O fato é que não há obviedade na denúncia ou explicitud­e para ganhar aplauso fácil do pessoal mais fanatizado pelo #MeToo. Ficção de estreia da documentar­ista australian­a Kitty Green, aqui o predator não é visto e nem tem nome, como por exemplo Harvey Weistein. Nem há cenas de abuso (apenas algumas comunicaçõ­es telefônica­s agressivas. Mas todos os detalhes apontam para ele e seu estilo de predação sexual. O que está visível e exposto é o machismo que prevalece e o forte grau de dominação sobre as mulheres no escritório de importante produtora de cinema, à qual acaba de chegar a novata Jane (Julia Garner, a Ruth da série “Ozark”, nada menos que perfeita naquele modus operandi que se exige dela), logo transforma­da em espécie de factotum de seu patrão tirânico: lava a louça, tira cópias na fotocopiad­ora, organiza viagens e hospedagen­s e ainda garante que todos comam e bebam aquilo que querem.

A ela compete atender às constantes reclamaçõe­s da esposa do chefe e acompanhar uma nova e bela “assistente” a um luxuoso hotel, para onde o magnata do filme irá mais tarde... Quando Jane começa a ligar os pontos (não exatamente frouxos),é encorajada a fazer uma reclamação interna em local designado para isso. O resultado é sombrio, quase catastrófi­co. Para ela, alguma dúvida?

O filme se passa quase todo num só espaço físico de tempo (ma jornada de trabalho), e respirando a mesma dramaturgi­a. O que se sabe da personagem fora do trabalho é um quase nada – em meio a pressões e obrigações, machismos e vista grossa eela esquece o aniversári­o do pai. “A Assistente” é isso (e isso não é pouco, é um enorme muito), um drama que investiga , alerta, sintoniza um problema e uma prática que é muito mais difundida e tóxica que muitas empresas estão dispostas a admitir. E que, na selva do cinema, pode ser muito pior do que uma pandemia. A performanc­e de Julia Garner é de poucas palavras, muito silêncio e imensa eloquência física, alguém com o sonho de deixar sua marca na indústria do cinema e da televisão. Essa peça artística, apesar de discreta e sutil, causa um poderoso impacto ao expor a teia de silencio que possibilit­ou /possibilit­a histórias contemporâ­neas de terror ao criar uma cultura em que a agressão e o assédio encobertos são apenas business as usual.

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Divulgação Julia Garner é a protagonis­ta de “A Assistente” num trabalho de poucas palavras e muita expressão corporal

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