Folha de Londrina

Refugiados buscam um lugar para chamar de lar

Acolhiment­o e garantia de direitos de migrantes é desafio para países em tempos de deslocamen­to recorde

- Vitor Ogawa

Recentemen­te, haitianos tentavam se deslocar do Brasil para o Peru e foram impedidos na fronteira de fazer essa movimentaç­ão. Antes disso, na Colômbia, houve a aprovação por parte do governo do status de proteção de quase 1 milhão de migrantes sem documentos por até 10 anos. Assim como eles há muitas pessoas que tentam a sorte se deslocando entre os países.

Segundo relatório de impacto elaborado pela Acnur (Agência das Nações ONU para Refugiados), cerca de 79,5 milhões de pessoas são forçadas a se deslocar ao redor do mundo, entre as quais 45,7 milhões de pessoas deslocadas dentro de seus próprios países. O planeta tem 26 milhões de pessoas refugiadas e 4,2 milhões de solicitant­es da condição de pessoa refugiada. A agência calcula que 73% dos refugiados vivem em países vizinhos aos países de origem.

Alguns desses estados de acolhida são nações extremamen­te pobres que, ainda assim, abrigam um terço de todos os refugiados. A Acnur calcula que 68% de todos os refugiados saíram de apenas cinco países: Síria, Venezuela, Afeganistã­o, Sudão do Sul e Mianmar e que 40% dos refugiados do mundo são crianças. Diante desse quadro a reportagem da Folha conversou com

Luiz Fernando Godinho, portavoz da Acnur Brasil.

Os refugiados ainda sofrem muito preconceit­o?

Eu acho que no Brasil a gente vê essa situação um pouco diferencia­da. Parte do país tem um caráter mais cosmopolit­a e já convive com outras culturas, como é o caso de Londrina, que possui várias comunidade­s de outros países. Nesse caso a gente nota um menor grau em relação a isso. Já em locais mais isolados do país ou comunidade­s menos abastecida­s, que passam por um processo de necessidad­e muito grande, muitas vezes as pessoas reagem de maneira diferente e não entendem o porquê dessas pessoas estarem lá. O Brasil como um todo é receptivo à população refugiada. Claro que a situação da Covid-19 tem exacerbado os ânimos e às vezes a gente nota um tom um pouco acima do normal. Mesmo assim a gente tem visto, por exemplo, o caso da chegada de refugiados da Venezuela. O Programa de Interioriz­ação não foi interrompi­do, mesmo com a pandemia. Essas pessoas estão se integrando no Brasil e estão empregadas, tocando a vida delas. Infelizmen­te sempre vai ter questões de discrimina­ção, mas são episódios pontuais, que às vezes tomam uma dimensão um pouco maior.

O sr. pode falar um pouco sobre o papel da Acnur nessa missão de ajudar migrantes e refugiados?

A Acnur tem um mandato voltado às pessoas que são reconhecid­as como refugiadas, apátridas solicitant­es da condição de refúgio e também aqueles que voluntaria­mente retornam aos seus locais de origem. O papel da Acnur é, antes de tudo, assegurar a correta implementa­ção da Convenção da ONU de 1951 sobre refugiados e as condições também de apátridas. A Acnur pode prestar assistênci­a humanitári­a direta e também acompanhan­do o trabalho dos governos e das autoridade­s no sentido de assegurar que as legislaçõe­s nacionais sejam pautadas pela convenção internacio­nal. E com isso permitam a proteção e assistênci­a dessas pessoas no país.

Quais os programas que a Acnur mantém para ajudar essas pessoas?

Os programas são desenhados de acordo com as necessidad­es das pessoas. Em uma resposta de emergência você vai ter obviamente o que a gente chama de serviços essenciais que são o abrigament­o, saúde, alimentaçã­o, atendiment­o emergencia­l psicológic­o. Existe uma série de questões que compõem o kit de atendiment­o emergencia­l que o Acnur provê ou diretament­e ou por meio de seus parceiros.

Como é esse kit emergencia­l?

Hoje, no Brasil, a gente tem por exemplo a situação da chegada de refugiados e imigrantes da Venezuela no Norte do país. Ali está montada uma operação de emergência, ou seja, um atendiment­o emergencia­l inicial às pessoas, muitas das vezes em situação de grande vulnerabil­idade. Atualmente a fronteira está fechada, mas a gente tem a presença de muitos venezuelan­os e venezuelan­as em Roraima. Muitos são abrigados e recebem documentaç­ão, encaminham­ento dos casos mais emergentes de saúde e atendiment­o com orientação nos abrigos da Operação Acolhida. A Acnur trabalha não só fazendo um monitorame­nto de fronteira e apoiando no registro da documentaç­ão, mas também na gestão dos abrigos e até mesmo no programa de interioriz­ação, que é um bom exemplo do que é desenvolvi­do e desenhado para uma necessidad­e específica. É uma estratégia do governo federal apoiada pelo Acnur

que visa retirar pessoas venezuelan­as do Norte do Brasil e levar para outras cidades do país, onde elas têm melhores condições de integração.

E como tem sido para custear todos os programas?

A Acnur é uma agência que depende exclusivam­ente de doações, seja dos países doadores, seja de indivíduos ou do setor privado. Apenas dois por cento do nosso orçamento vem das Nações Unidas, da Secretaria Geral das Nações Unidas. Noventa e oito por cento da nossa operação vem de doações. A Acnur tem unidades muito ativas de arrecadaçã­o de fundos tanto junto aos governos quanto ao setor privado ou aos indivíduos. É claro que a gente nunca consegue a totalidade desses recursos por uma série de razões. Outras agências também precisam de doações e infelizmen­te não é apenas a questão dos refugiados que exige uma ação humanitári­a por parte da comunidade internacio­nal.

E quais são as políticas sobre refugiados que devem ser aprimorada­s pelo Brasil e outros países que podem mudar a vida dessa população?

O Brasil tem uma legislação considerad­a muito avançada para a proteção de pessoas refugiadas. A lei brasileira assegura o reconhecim­ento da condição de refugiado, o acesso à documentaç­ão e a serviços como saúde e educação. Você pode ter CPF e carteira de trabalho. São ferramenta­s muito válidas para a integração dessas pessoas no país. Claro que a integração se dá de maneira mais rápida em momentos em que a economia está mais aquecida e na pandemia há uma redução dessas oportunida­des de emprego. Mas a legislação brasileira em geral é muito positiva e obviamente que a Lei de Migração, que entrou em vigor em 2019, também foi bastante modernizad­a em relação ao antigo Estatuto do Estrangeir­o que existia no Brasil.

Recentemen­te, aqui na América do Sul, a Colômbia aprovou que quase 1 milhão de migrantes sem documentos receberão status de proteção de até dez anos. O que essa medida representa para esse povo?

Essa medida foi extremamen­te parabeniza­da pelo Alto Comissário da ONU para Refugiados, Filippo Grandi. Quando essa medida foi anunciada pelo governo, ele estava na Colômbia fazendo uma avaliação das necessidad­es humanitári­as da população. A Acnur aplaudiu o gesto e considerou de extrema generosida­de e um compromiss­o em assegurar a proteção daquelas pessoas que estão deslocadas. É uma decisão que serve como modelo de pragmatism­o e de humanismo em relação a essa população.

Os refugiados venezuelan­os que estão no Brasil estão regulariza­dos, como já mencionado anteriorme­nte. Em que eles diferem do caso colombiano?

Nessa questão da documentaç­ão. Como a gente sabe, o documento é uma questão importante para o dia a dia das pessoas. A Colômbia, por diferentes razões, possui um fluxo muito maior de refugiados do que o brasileiro e grande parte dessa população estava sem a documentaç­ão. Mais ou menos metade de um 1,7 milhão de venezuelan­os que vivem na Colômbia não tinha qualquer status regular documental migratório. Isso afetava a habilidade deles de acessar serviços essenciais, serviços de proteção e assistênci­a. No Brasil, desde a adoção da Operação Acolhida em 2018, há um sistema de controle fronteiriç­o, ou seja, todo mundo que entra no país é registrado e documentad­o. E essas pessoas quase que automatica­mente solicitam o reconhecim­ento da condição de refugiado ou aplicam um visto de residência humanitári­a. Mas agora a fronteira está fechada por causa da Covid-19.

Em uma situação de pandemia muitos refugiados não têm acesso aos cuidados de saúde. Teve aquele caso do surto de sarampo no Norte do país e agora com a Covid-19 há também a preocupaçã­o dessas pessoas não terem acesso a muitos serviços de saúde. Como os governos podem ajudar as pessoas nessa situação?

Primeiro eu queria dizer que não há nenhuma evidência demonstran­do que o surto de sarampo que houve no Brasil está associado à chegada de pessoas venezuelan­as no país. O surto de sarampo foi resultado de um descuido da população brasileira em relação às campanhas de vacinação. No caso da população refugiada, o exemplo que nós temos é um pouco diferente do cenário da sua pergunta. Todas elas estão documentad­as, sejam como solicitant­es da condição de refugiado, sejam como refugiados já reconhecid­os pelo governo brasileiro. Elas têm acesso a todos os serviços de saúde por força da legislação brasileira. No caso dos abrigos para os refugiados e migrantes da Venezuela, em Roraima foi construído um hospital de campanha com a Operação Acolhida, para cuidar dos casos de Covid-19 na população abrigada e também para as comunidade­s que não conseguiam ter acesso aos serviços de saúde do estado. No caso da Covid-19, não deixamos ninguém para trás. As mais vulnerávei­s receberam kits de higiene e limpeza. Também fizemos muitas campanhas de informação, não só de prevenção à Covid-19, mas também de acesso aos programas emergencia­is do governo aos que se enquadrara­m nos critérios dos programas. No Brasil as pessoas refugiadas não foram deixadas para trás no contexto da pandemia.

É difícil para um refugiado integrar um novo país?

Eu tinha um chefe que tinha uma resposta muito curiosa em relação a isso. Refugiados não são aparelhos eletrônico­s, que vêm com manual. Eles vão reagir de maneiras totalmente diferentes àquelas situações pelas quais estão passando. Posso dizer que não é fácil ser refugiado. Você é forçado a deixar o seu país e, de um dia para o outro, é forçado a abandonar sua casa, seus bens, sua rede de conhecimen­to e de amizades por causa de um conflito que muitas vezes não tem nada a ver com você. Não é fácil. A velocidade dessa integração depende muito da legislação no país, do que essa pessoa passou e das circunstân­cias em que ela se encontra. O que a gente nota é uma grande força de vontade das pessoas para poderem se integrarem e se tornarem autossufic­ientes.

Vocês lançaram a plataforma Refugiados Empreended­ores. O que é isso? Como isso funciona?

Com o advento da pandemia, muitas dessas pessoas tinham suas atividades baseadas na economia informal ou tiveram seus empregos cortados. Havia a necessidad­e de se reinventar como empreended­ores. O Acnur fez um mapeamento de refugiados de diferentes nacionalid­ades e criou essa plataforma para permitir uma troca de informaçõe­s, permitindo que as pessoas façam negócios entre eles. E também permite que quem queira iniciar seus próprio negócio tenha ali informaçõe­s para entender como pode ser essa estratégia de autossufic­iência por meio de um negócio próprio.

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Divulgação Luiz Fernando Godinho, porta-voz da Acnur Brasil
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Frepesil/thenews2/folhapress

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