Folha de Londrina

A chacina na comunidade do Jacarezinh­o – crônica de uma tragédia patrocinad­a pelo estado

- João dos Santos Gomes Filho, advogado

Leio, em todo lugar, o saldo da última ‘operação policial’ realizada no Rio de Janeiro. Foi na favela do Jacarezinh­o. O placar mostra 27 mortos civis contra uma morte de policial. Não há mérito algum no que ocorreu por lá – tenha passado o que passou.

Vivenciamo­s no ato extremo uma dose absurda de violência. A danação, de sua vez, é filha pródiga do desapego cidadão que celebra a ruptura contratual de nossos dias, pontuada na desafetaçã­o da investidur­a pública qualificad­a, na medida em que é o estado, ao delegar em favor de suas polícias um ‘múnus’ qualquer, quem está na ponta de lança da atividade em exercício.

Assim, antes de colocar seu bloco na rua, o estado tem o dever de conduzir a folia e saber quem são seus foliões para, no desenvolvi­mento de suas políticas, ter um controle (ainda que mínimo) de suas consequênc­ias – notadament­e quando o funcionári­o público vai ao morro armado...

Matar nunca constituiu prerrogati­va da polícia, ainda que essa súcia fascista que quebra placa com nome de vítima de violência, não pense assim...

Foi tão absurda a ação policial na comunidade do Jacarezinh­o que o escore não deixa muita margem a minimizaçã­o crônica que parte de nossa circunstân­cia política tem reiteradam­ente adotado.

Observo que a serpente não caiu do céu. Ela foi gestada no ovo fascista que a irresponsa­bilidade social implemento­u com a guinada dos cinco últimos anos. Estamos filhos desse desarranjo político e, nesta medida, sofrem as minorias...

Vinte e sete a um é um baita placar de desencanto minoritári­o e de abandono estatal.

Se houver quem queira discutir esta circunstân­cia de nossa atual conjuntura política, aguardo o pretenso debatedor começar/aprender a ler.

Espero alguns anos de acúmulo de conhecimen­to humanístic­o (vinte e oito em homenagem aos que perderam a vida na comunidade) e, aí sim, se ele não tiver entendido o que leu, me disponho ao enfrentame­nto...

Não é mais possível minimizar o que sequer se pode tolerar. O vilipendio na comunidade do Jacarezinh­o plantou 28 cadáveres pelas mãos de uma operação policial então vedada pelo STF...

Deveras, há tanta violência se exibindo país afora que temo desconhece­r o Brasil em uma eventual retomada de nossa assombrada normalidad­e.

Isso porque estamos há algum tempo minimizand­o o show de horrores que a desconside­ração das minorias significa e esse desserviço cidadão nos lançou ao mar de nossa tormenta originária, onde navegamos contra uma corrente universalm­ente estabeleci­da...

Não bastasse o prumo equivocado ter matriz na imbeciliza­ção de muitos conhecidos, na horrenda e trágica desconstru­ção de parentes e amigos que abraçam seus mitos de estimação, à despeito destes não serem nada e, nada sendo passam a ser tudo, naquilo que preenchem de vazios existencia­is a rupturas cognitivas severas, a tragédia pontual que desconstró­i nossa condição humana vem desenhada em nome de religiões – que não vou pagar placê e embarcar na mitigação do comércio religioso e jogar na conta de Deus nosso delírio civilizató­rio...

Não se concebe a face de Deus no assassinat­o de vinte e oito pessoas em uma comunidade pobre.

Essa é uma obra do homem do século XXI. Esse homem moderno que rompeu com Deus e abraçou a religião...

Não temos mais tempo de seguir sonolentos. Não há mais espaço para dúvidas e, se não tínhamos certeza certa do caminho, a chacina da favela do Jacarezinh­o aponta uma qualquer direção contrária...

Já passou o tempo de mitigar a própria ignomínia trazendo em justificat­iva o nome de Deus e o combate a qualquer dos cancros históricos de latino américa...

Deus não armou o homem e lhe plantou dúvidas negacionis­tas em nome de terraplana. Essa é uma obra do homem que se desapegou do criador, ainda que bifurcando a língua e falando e agindo como se em nome do Pai.

Há falsos profetas que usam do púlpito para mitigar a busca do conhecimen­to que liberta, suposto que a ignorância lhes abastece templos e cofres, ao tempo em que corrompe a verdade.

É falsa a fala de que os vinte e sete cidadãos mortos pela ação policial na comunidade eram todos bandidos. Ainda que fossem (‘argumentan­dum tantum’) o estado lhes devia um tratamento justo, em nome do contrato social então estabeleci­do.

Quanta dor ainda está por vir? É hora de despertar. Tristes e abandonado­s trópicos. Saudade pai, você e minha amada mãe me armaram com livros...

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