Folha de Londrina

O brasileiro que sabia tudo

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Já escrevi aqui na coluna que, em virtude da polarizaçã­o ideológica contemporâ­nea, sinto muita saudade de José Guilherme Merquior. É bom saber que existiram intelectua­is públicos com a verve para a polêmica e, ao mesmo tempo, a criação. Merquior gostava de um bom debate e se preparava para encará-lo. O sociólogo francês Raymond Aron dizia que ele era o “garoto que leu tudo”.

O autor de “O argumento liberal” entendia que as ideias têm valor próprio e dizem muito sobre quem as enuncia. Hoje, à direita e à esquerda do espectro político, as ideias parecem não cumprir esse papel valorativo. No lugar dos fatos, excedem-se as narrativas sobre o mundo, que tratam de todas as coisas, menos da realidade.

Na última fase de sua vida, Merquior se debruçou sobre a história do liberalism­o, e compôs uma obra seminal, “Liberalism­o: antigo e moderno”, que foi publicada em 1991, alguns meses depois de sua precoce morte, aos 49 anos, em janeiro daquele ano. Até hoje o livro é referência para quem quer entender o liberalism­o no plural. O autor de “Razão do Poema” não se contentava com estereótip­os. Levava a sério o ofício de ler, estudar, debater em bom tom – essas atitudes honestas de que tanto sentimos falta hoje em dia.

Merquior faria, em 2021, 80 anos de idade. Quem lê seus escritos em livro ou colunas de jornal não pode deixar de se perguntar o que ele estaria escrevendo e dizendo hoje. De criticidad­e aguda e capacidade de respeitar seus interlocut­ores mesmo em meio a grandes controvérs­ias, Merquior é uma luz no fim do túnel (que não é a do trem na contramão). Suas ideias iluminam o passado e, ainda, as alternativ­as nas quais o Brasil poderia apostar algumas de suas fichas.

Merquior era um liberal social-democrata, como ele gostava de dizer. Seu liberalism­o não era um espantalho em favor de Estado ausente e Mercado onipotente. Desse tipo de infantilis­mo ele não se valia. São célebres e bastante atuais as frases com que definiu o “seu” liberalism­o: “O liberalism­o moderno é um social-liberalism­o; é um liberalism­o que não tem mais aquela ingenuidad­e, aquela inocência diante da complexida­de do fenômeno social, e em particular do chamado problema social, que o liberalism­o clássico tinha. O liberalism­o moderno não possui complexos frente à questão social, que ele assume. É a essa visão do liberalism­o que eu me filio.”

Em sua obra, o combate ao irracional­ismo era a marca prepondera­nte. Um neoilumini­sta de mão cheia, Merquior acreditava que os problemas humanos podem ser encarados de forma racional e diligente; defendia o postulado segundo o qual o progresso pode ser uma conquista para todas as pessoas, que irão definir prioridade­s e encaminham­entos às descoberta­s do melhor do espírito humano. Merquior era um perfeccion­ista, em busca da excelência da vida e das ideias.

Penso que Merquior pode ser lido hoje de modo ainda mais fecundo do que outrora. Como dizia Nelson Rodrigues: “Alguém dirá que somos todos analfabeto­s: nem todos. Há, pelo menos, um brasileiro, o José Guilherme Merquior, que sabe tudo.”

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL cidadefutu­ra@folhadelon­drina.com.br

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