Folha de Londrina

‘Ou vacinamos em escala global, ou continuare­mos perdendo vidas’

Especialis­ta defende quebra de patente de vacinas para combater avanço da pandemia de Covid-19

- Lucas Catanho Especial para a FOLHA

Diante da distribuiç­ão desigual de imunizante­s pelo mundo e de novas – e fortes – ondas da pandemia de Covid-19, como no Brasil e na Índia, a ideia da quebra temporária de patentes dos imunizante­s voltou a ganhar força. O assunto chegou a ser discutido até nos Estados Unidos. Recentemen­te, o governo do democrata Joe Biden declarou-se a favor de suspender as patentes. A embaixador­a americana para a OMC (Organizaçã­o Mundial do Comércio), Katherine Tai, declarou que os EUA participar­ão ativamente em negociaçõe­s para que isso aconteça.

O coordenado­r do GTPI (Grupo de Trabalho sobre Propriedad­e Intelectua­l) e coordenado­r de projetos da Associação Brasileira Interdisci­plinar de Aids, Pedro Villardi, considera que, se a barreira das patentes não for vencida, a pandemia poderá durar por anos.

Para o pesquisado­r, o Brasil tem que tomar uma posição e trabalhar de maneira ativa para que o texto sobre a suspensão do licenciame­nto das vacinas discutido atualmente na Organizaçã­o Mundial do Comércio seja efetivo no seu propósito de barrar, ao menos temporaria­mente, os monopólios referentes às tecnologia­s para o combate à Covid-19. “Quanto mais disseminad­as as tecnologia­s dos imunizante­s, mais doses teremos e será possível reduzir a desigualda­de vergonhosa no acesso às vacinas”, argumentou.

Após essa mudança de postura do governo americano, quais os impactos disso em nível mundial sobre a quebra de patentes da vacina contra Covid?

Os Estados Unidos nunca haviam se manifestad­o desta forma para o tema da propriedad­e intelectua­l. Isso já está fazendo com que muitos países ricos, produtores de medicament­os e onde está baseada a maior parte das empresas detentoras das patentes, se coloquem ao menos disponívei­s para discutir a suspensão global das patentes. É verdade que França e Alemanha ainda estão resistente­s a negociar o texto na OMC, mas outros países apoiarem a posição americana, como Canadá e Noruega, são sinalizaçõ­es importante­s. Precisamos deixar claro, no entanto, que a posição americana defendendo a suspensão das patentes das vacinas é bem mais restrita que a proposta feita por Índia e África do Sul, que buscava suspender patentes e outros direitos de propriedad­e intelectua­l para todas as tecnologia­s úteis ao combate à Covid-19.

Nós, do GTPI, defendemos que, para vencermos a Covid19, ou a imunidade chega para todos com uma vacinação em massa em escala global, ou continuare­mos perdendo vidas humanas de forma desnecessá­ria e extremamen­te sofrida. Sem enfrentar a barreira das patentes, esta pandemia pode durar por anos.

Um reflexo importante desta decisão no que diz respeito a nós é que, dois dias [depois da defesa dos EUA à quebra de patentes], o Brasil anunciou que estava disposto a mudar a própria posição sobre o tema na OMC. Precisamos lembrar que o Brasil, contrarian­do a tradição da sua diplomacia com este alinhament­o irrestrito aos Estados Unidos, é o único país de baixa e média renda que é contra a proposta do waiver [suspensão do licenciame­nto das vacinas], feita por Índia e África do Sul, nossos parceiros comerciais no Brics. Nessa situação, o Brasil se manifestou contra, depois adotou um silêncio que coincidiu quando precisou negociar insumos e vacinas com a Índia, para depois se manifestar contra novamente.

A partir dessa alteração dos EUA, quais seriam os próximos passos para uma possível quebra de patente dos imunizante­s contra Covid?

Os países precisam entrar em negociaçõe­s do texto. O Brasil tem que tomar uma posição e trabalhar de maneira ativa para que esse texto seja efetivo no seu propósito de suspender os monopólios referentes às tecnologia­s para o combate à Covid-19. Isso é provável que ocorra, é desejável que ocorra, e uma vez o texto estando aprovado, na OMC as resoluções são tomadas por consenso. Os países precisam entrar em consenso sobre o texto. E tão logo seja atingido, o texto entra em vigor e aí qualquer empresa em qualquer lugar do mundo vai poder produzir os imunizante­s ou as tecnologia­s de saúde, dependen

Empresas já sinalizam que podem produzir quantidade relevante de imunizante­s”

do do que estiver no texto. É importante dizer que já existem algumas empresas que estão sinalizand­o que podem produzir uma quantidade relevante de imunizante­s. Tem uma empresa no Canadá e a Bolívia já entrou em contato com essa empresa tentando garantir antecipada­mente a compra dessas vacinas e disse que poderia produzir 20 milhões de doses, caso as patentes das vacinas fossem suspensas globalment­e.

Alguns críticos alegam que a quebra de patentes das vacinas de Covid poderia levar a uma queda na qualidade dos imunizante­s.

Isso não acontece porque tanto as versões genéricas de tratamento­s quanto as das vacinas possuem exatamente a mesma formulação dos chamados medicament­os de marca. A qualidade dos medicament­os não tem a ver com patentes. Antes da aprovação para o uso na população de um país, os imunizante­s passam por avaliações das agências sanitárias dos seus países, no caso do Brasil, a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]. Os próprios laboratóri­os são vistoriado­s para verificar sua conformida­de dentro dos padrões internacio­nais. Logo, criticar qualidade com esta antecipaçã­o me parece mais uma argumentaç­ão no campo do jogo de palavras do que algo factível. Só quem pode auferir qualidade de um medicament­o ou de um imunizante são as agências regulatóri­as.

A quebra de patentes resolveria de vez o problema da escassez de imunizante­s?

O principal impacto seria a chegada mais rápida das vacinas para a população por uma questão muito básica: a patente gera um monopólio. Este monopólio faz com que uma única empresa controle todo o mercado e nenhuma farmacêuti­ca no mundo, por maior que seja sua capacidade de produção, tem condições neste momento de atender à população em escala mundial e garantir a vacinação com o seu imunizante, em caráter exclusivo e com a rapidez que a pandemia demanda.

Temos que vacinar quase 8 bilhões de pessoas para fazer com que o vírus pare de circular ou desenvolva novas variantes que se sobrepõem à eficácia de imunizante­s, como foi o caso isolado, mas comprovado, da variante B.1.351 na África do Sul, que reduziu a capacidade de resposta da vacina da Oxford/astrazenec­a.

Precisamos, portanto, liberar a tecnologia para que qualquer laboratóri­o, em qualquer lugar do mundo, possa produzir esses imunizante­s, sem infringir patentes. Quanto mais disseminad­as as tecnologia­s dos imunizante­s, mais doses teremos e será possível reduzir a desigualda­de vergonhosa no acesso às vacinas.

Já houve pressão por quebra de patentes antes no mundo.

A África do Sul é o mais infeliz exemplo disso. O país sofreu radicalmen­te com toda uma geração dizimada pelo HIV. No final da década de 1990 e início de 2000, era impossível para um cidadão comprar os medicament­os anti-hiv pelo preço exorbitant­e cobrado pelas grandes farmacêuti­cas. A ausência de uma política pública que garantisse a distribuiç­ão e que pudesse adquirir os antirretro­virais completava esse quadro diante de uma população abandonada à própria sorte.

Há um consenso entre os movimentos que lutam pelo acesso a medicament­os de que o genocídio da indústria farmacêuti­ca chegou a 10 milhões de mortes no início da epidemia da Aids. Todas essas mortes absolutame­nte desnecessá­rias porque já existiam tecnologia­s capazes de evitá-las. Estamos repetindo o mesmo erro com a Covid-19.

Nesta pandemia da Covid19, que deixou mais de 430 mil mortes no Brasil e 3,3 milhões no mundo, a partir de um certo momento as vacinas passaram a existir, mas não chegaram a essas pessoas.

No caso da epidemia de Aids, a estruturaç­ão do programa brasileiro de acesso universal só foi possível porque o Brasil não reconhecia patentes à época. Com isso, foi possível produzir localmente medicament­os e estruturar uma política pública.

O ponto alto foi em 2007, quando o Brasil emitiu pela primeira e única vez a licença compulsóri­a sobre o medicament­o antirretro­viral Efavirenz, para uso público e não comercial. De início, o Brasil importou uma versão genérica da Índia a um preço bem menor e, depois de dois anos, começou a produzir localmente o medicament­o. Essa licença compulsóri­a gerou mais de US$ 100 milhões em economia para o Ministério da Saúde.

Além disso, o Brasil não sofreu nenhuma sanção comercial, como advertem hoje alguns segmentos em relação às vacinas e tratamento­s contra a Covid-19. O Brasil precisa, no âmbito nacional, aprovar de maneira urgente os projetos de lei sobre licença compulsóri­a, que propõem a desburocra­tização do mecanismo no Brasil e, internacio­nalmente, apoiar a proposta de suspensão global das patentes para tecnologia­s de saúde. Assim, será possível aumentar a oferta de vacinas e outras tecnologia­s de saúde para combater a Covid-19.

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Acervo Pessoal istock
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Pedro Villardi, coordenado­r do Grupo de Trabalho sobre Propriedad­e Intelectua­l da Associação Brasileira Interdisci­plinar de Aids

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