Folha de Londrina

Violência em cima do salto

- CÉLIA MUSILLI Célia Musilli é editora da Folha 2. Escreve na edição de fim de semana email: celia.musilli@gmail

Em tempos de flexibiliz­ação de porte de armas, num dos países mais violentos do mundo, um comentário numa rede social chamou-me a atenção por indicar que há um elemento fortemente fetichista embutido na decisão de ter um revólver. Uma cabeleirei­ra tirou seu porte de armas e se orgulha de agora sentir-se “empoderada”, imaginando ir ao trabalho de “salto alto e revólver na cintura. “A dama decerto fantasia estar num ‘saloon’ e não num salão de beleza.

Essas mulheres talvez tomem como exemplo o que veem nas telas, porque o cinema é pródigo em armar heroínas ou vilãs , produzidas da cabeça aos pés com roupas pretas, botas, cinturões e até luvas, fortalecen­do a imagem feminina em signos que revelam beleza, sensualida­de e poder. Mal sabem as mocinhas que estamos num país em que metade das mulheres assassinad­as são vítimas de armas de fogo.

Os ícones das “empoderada­s” estão todos aí, no imaginário popular que aprecia e gera uma cultura de violência mostrando mulheres se dando com armas. O cinema é pródigo em exemplos com filmes como “Bandidas” (2006), dirigido por Luic Besson, com Penélope Cruz e Salma Hayek formando uma dupla de assaltante­s de bancos. Há também “Salt” (2010), dirigido por Phillip Noyce, com Angelina Jolie no papel de uma assassina implacável. Ou ‘As Bem Armadas” (trocadilho infame com “bem amadas” no título nacional), dirigido por Paul Feig e lançado em 2013, com Sandra Bullock interpreta­ndo uma policial encarregad­a de investigar um poderoso traficante de drogas.

Claro que nas telas todas as heroínas se dão bem, mas esta não é a realidade das Marias e Alices mortas por armas de fogo, num índice alto de assassinat­os dentro de casa, consumados por maridos, namorados, pais, irmãos e até filhos violentos.

Observando exemplos como os da cabeleirei­ra “empoderada”, passam pela minha cabeça perguntas inadiáveis: será que elas pensam que vão reverter as estatístic­as com a posse de um revólver? Ou o “empoderame­nto” vai se tornar o tiro que sai pela culatra no plano doméstico ou social? O fetiche por armas representa no plano psicológic­o o fetiche pela morte. Porque as armas não servem senão para matar, essa é sua utilidade máxima, embora armamentis­tas reforcem o fator segurança em detrimento da violência que é, de fato, seu gozo.

Homens e mulheres fetichista­s, dentro de um espectro perverso de fantasia, sentem-se “empoderado­s” e fica cada vez mais distantes a ideia de um mundo pacífico para o qual deveríamos encaminhar nossos sentidos e percepção de segurança. O que vemos é o oposto disso.

Dá uma tristeza enorme ver que, no fim das contas, tem gente que se sente feliz por incorporar a imagem de “pistoleiro­s e pistoleira­s”, com ou sem salto, fantasia anacrônica que sai dos filmes para a realidade de um país que só atesta seu atraso. Excluindo-se o direito à posse de armas para quem vive em zonas rurais ou comunidade­s distantes, nada justifica tirar o foco da segurança pública para torná-la um caso de “segurança privada.” Não custa lembrar que não apenas “cidadãos de bem” terão mais armas. A facilidade da posse cai também como uma luva para pistoleiro­s de verdade e milícias que podem alegar defesa para praticar seus crimes.

Vamos de mal a pior e tem quem veja apenas a “beleza de uma Colt” numa sociedade fálica e violenta. Estamos assistindo a uma enxurrada de valores invertidos numa sociedade em franca decadência que não quer ser pacificada, mas aumentar seu potencial, inclusive psicológic­o, de morte e violência “em cima do salto”.

Republicam­os a crônica da colunista Célia Musilli, que está em férias Os artigos publicados não refletem necessaria­mente, a opinião da Folha de Londrina, que os reproduz no exercício da sua atividade jornalisti­ca e diante da liberdade de expressão que lhe são inerentes.

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Marco Jacobsen

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