O avião que vinha buscar o pai de santo e caiu em Apucarana
Podem aguardar o “livro de memórias” do jornalista e publicitário londrinense Pedro Affonso Scucuglia, nosso ex-colega de Redação na FOLHA. Terá crônicas e histórias de fatos de sua época na Comunicação e de vários que presenciou ou participou.
Como essa que contou para a Coluna e aqui está: “Manhã de tempo fechado - fechado não, fechadíssimo! - em um dia de julho de 1973. Uma daquelas manhãs de inverno que só o Norte do Paraná sabe ter e Apucarana capricha ainda mais na neblina, para garantir que o vivente não enxergue nada, a mais de um metro à frente. Naquela manhã, para fazer o percurso Londrina-apucarana eu havia demorado quase hora e meia. Normalmente, em 45 minutos estava na TV Tibagi, onde era diretor de jornalismo.
Já havíamos feito a edição do noticiário do meio dia - O Bom da Notícia 1ª edição - almoçado no restaurante da própria emissora e voltado para o soninho de quinze minutos, meia hora, antes de começar a trabalhar nos outros dois jornais do dia. Um às 19h e outro às 22h. Devia ser o quê? Uma e meia da tarde?
Sentado na cadeira com os pés sobre o tampo da mesa, começava a cochilar quando ouvi o ruído do motor de um avião. O som começou bem baixo e foi aumentando, como se o avião estivesse se aproximando. Comentei com o Chico Amaro e com o Zé Carlos Vieira, também jornalistas da Tibagi:
- Nem f... eu queria estar dentro desse avião, com um tempo desses. Se dirigir já é perigoso, imagina voar.
E o som, em vez de aumentar e diminuir, como se o aparelho estivesse passando em linha reta sobre nós, ia e vinha, ia e vinha e percebíamos que o som do motor estava ficando cada vez mais alto. Aí já comecei a me preocupar e falei para os dois:
- Esse piloto está perdido e voando em círculos, bem aqui em cima. Vai dar merda. Pode até bater na torre.
O que era preocupação já estava virando pavor. Todos nós, talvez 40 funcionários, não sabíamos se ficávamos dentro do prédio ou se corríamos para fora. Só havia uma certeza: o episódio não ia acabar bem. E o avião descendo em círculos cada vez mais fechados.
E vale lembrar o seguinte: Apucarana é a cidade mais alta do Norte do Paraná, com 989 acima do nível do mar; a televisão estava no ponto mais alto da cidade - o topo de um morro na saída para Curitiba - e a nossa torre elevava-se a 60 metros de altura. Ou seja, um obstáculo com 1.048 metros, terrivelmente próximo da rota por onde o avião passaria. Tínhamos naquela manhã todos os ingredientes necessários para compor uma tragédia. E ela não se fez esperar.
O avião circulando às cegas, o som do motor aumentando, todos nós entrando em pânico, sem saber o que fazer, muitos - eu inclusive - correndo para o pátio tentando ver algo , mas sequer conseguíamos enxergar o pé da torre, quanto mais as luzes de sinalização no topo, 60 metros acima, dentro daquele mingau cinzento. E o som do motor cada vez mais alto, cada vez mais perto, cada vez mais apavorante.
A sensação de impotência era total. Um olhava para o outro de modo aparvalhado, sem saber o que dizer ou fazer. E o som do motor cada vez mais próximo. De repente, em uma fração de segundo, o ronco altíssimo do motor foi interrompido por uma pancada forte, grave, única, definitiva. PAM. E não se ouviu mais nada. Depois de alguns segundos de silencio total, em uma só voz, como se tivéssemos ensaiado, gritamos:
- O avião caiu!
Atrás do terreno da televisão havia um pequeno cafezal cercado por fios de arame farpado e o som da pancada tinha vindo de lá. Corremos todos para lá, atravessamos a cerca de arame farpado sem saber como e começamos a procurar o avião.
Não foi difícil achá-lo. A cada passo dentro do cafezal o cheiro de gasolina era mais forte e começamos a gritar para ninguém acender um fósforo ou isqueiro. Vinte, trinta metros após a cerca, lá estava o avião, enterrado até as asas, totalmente destruído. Havia entrado voando no solo e não derrubou mais do que eia dúzia de pés-decafé. Era fácil deduzir: o piloto estava tentando ver se enxergava o chão... O avião era um Piper Arrow branco, com faixas laterais verde-escuro. Uma semana antes eu havia voado em um avião exatamente como aquele.
Não vou descrever como o piloto estava. Você pode imaginar. Pensei: preciso pegar os manuais do avião, certificados de propriedade, documentos do piloto e falar com o destacamento da Força Aérea Brasileira, em Londrina relatando o episódio. E mesmo com o estômago embrulhado com o cheiro de combustível, sangue e carne dilacerada, vasculhei o que restava da cabine e achei a maleta do piloto praticamente intacta. Enquanto todos os funcionários da TV enxameavam em volta dos destroços, voltei para a TV. Em menos dez minutos entramos no ar:
- Em edição extraordinária, informa a TV Tibagi...
Enquanto redigia a nota, havia pedido para ligarem com a torre de controle do aeroporto, em Londrina. Alguém atendeu (sargento Adilson?), relatei o acidente, informando estar de posse dos documentos do avião e do piloto. Disse-lhe que levaria os documentos para ele no dia seguinte, o que fiz.
E aí veio o efeito colateral. Com a notícia no ar, umas mil pessoas foram atraídas ao local transformando o cafezal e os destroços do avião em um circo de horrores. E não é que parte desse pessoal começou a roubar pedaços do avião, tirar instrumentos da cabine, posar para fotos ao lado do piloto morto? Foi preciso a Polícia Militar ser rigorosa, dar empurrões nos mais afoitos e montar guarda cerrada ao que restara do Piper.
Alguns dias depois um membro do Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos) me ligou agradecendo e informou: era um piloto novo, recém-brevetado e havia cometido um erro básico: no meio do mingau cinzento daquela manhã, ao perder a referência solo, em vez de subir para furar a camada e encontrar céu limpo e daí procurar orientar-se via radiofonia - havia descido e procurado fazer um voo visual. Na verdade, fatal.
O rapaz tinha menos de trinta horas de voo, recém-saído de um aeroclube. Olha a ironia do destino: havia decolado do interior de Minas Gerais e ia buscar, em Londrina, um pai de santo para fazer “trabalhos” para o fazendeiro dono do avião...