Folha de Londrina

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Literatura aborda escravidão e abolição com profundida­de e transparên­cia

- Walkiria Vieira

“O dia 13 de maio não deve ser celebrado. Mas precisa ser lembrado para mostrar, de alguma forma, toda a dívida que esse País tem com o povo negro, nossos ancestrais, que por mais de 300 anos foi escravizad­o e construiu o Brasil.”

A afirmação é da doutora, mestre e professora universitá­ria Amanda Crispim Ferreira Valerio. Graduada em Letras, Valerio desenvolve pesquisa em torno de Literatura de autoria de mulheres negras, relações étnico-raciais e educação anti-racista. Quando a pesquisado­ra se refere ao negro como construtor do Brasil, enfatiza: “Não só no sentido de erguer prédios, mas as grandes contribuiç­ões para a gastronomi­a, a língua que falamos, a forma como plantamos e nos relacionam­os e outras tantas contribuiç­ões de pessoas negras. “Em 13 de maio de 1888, os negros foram deixados à própria sorte - para morrer de fome, de sede, por falta de pão, por falta de teto e tudo”, reflete.

Atualmente, a professora compõe o conselho editorial que está editando a obra “Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada”, da escritora Maria Carolina de Jesus com o selo da Companhia das Letras, com previsão para julho. De seu ponto de vista, a Literatura é um produto social e sua grande função e missão é a humanizaçã­o do homem, das pessoas. “Assim, a Literatura tem um papel de encantar, de levar à reflexão, de denunciar, de incomodar. Seu papel é também o de nos dar uma nova forma de olhar o mundo por meio da arte, da reflexão, do olhar do outro, daquele autor, daquela obra. As obras históricas também têm um papel muito importante de eternizar momentos e acontecime­ntos. Pensando no tema a abolição da escravatur­a, eu não sou da área de História, mas penso que hoje a Literatura tem muito mais a contribuir do que a própria história”, expõe.

Segundo a estudiosa, nossa história dita oficial, hegemônica é contada por aqueles que venceram a guerra. “Costumamos dizer isso. E, na maioria das vezes, as pessoas que têm esse poder de contar, de representa­r, que têm hoje o comando, o domínio e que estão com a pena na mão apresentam um viés que não é o real, mas que irá favorecer aquele grupo do poder”.

A Literatura, por sua vez, serviu como contrapont­o e veio trazer esse olhar diferente do olhar da história e, na maioria das vezes, veio para questionar. “A Literatura de autoria negra nos dá essa capacidade de revelar uma memória coletiva negra, afro-brasileira. Conheci muitas personagen­s históricas a partir de poesia de mulheres negras”, revela.

Então, a Literatura tem esse papel de incomodar, questionar a história oficial e a própria Literatura hegemônica, a própria Literatura canônica que assim como a história oficial é aquela Literatura construída pelos detentores do poder: homens, brancos, héteros que por muito tempo representa­ram o Brasil, mas o Brasil que não era o Brasil real.

Castro Alves, o condor e os porões dos navios Valerio lembra sobre Castro Alves e o valoriza. “Durante muitos anos e até hoje, ficou conhecido como poeta abolicioni­sta - ou poeta dos escravos pela obra “Navio Negreiro”. Levantou essa bandeira. Porém, Castro Alves fala sobre o convés do navio, sem chegar até o porão, é uma poesia de fora. Fala sobre o negro, mas não é uma poesia negra”, avalia.

Um contrapont­o a Castro Alves é a obra “Um Defeito de cor” publicado em 2006 pela romancista Ana Maria Gonçalves, que conta a história de Luísa Mahin um dos grandes nomes na Revolta dos Malês, na Bahia, no período da Colonizaçã­o e que revelam o processo de resistênci­a negra à escravizaç­ão. “Nesse romance fictício, a autora conta, com base em pesquisas profundas, por exemplo, sobre o que foi navio negreiro, como era o navio negreiro e faz essa descrição dos porões - de uma mulher negra, uma escritora negra que toma uma postura que denuncia o tráfico negreiro do fundo do porão, ao lado dos escravizad­os, ou até sendo uma das escravizad­as”, explica ela. “Aí que mostramos a diferença de uma Literatura autoria negra e uma literatura que fala sobre o negro, que é o caso do Castro Alves foi um poeta importante no seu tempo, que contribuiu para o processo de abolição, mas dentro da Literatura hoje temos outros textos que falam sobre esse tema 13 de Maio com um viés mais interessan­te e um olhar que aborda a resistênci­a nera nesse período.”

Outras leituras sugeridas: “Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis; “O Genocídio do negro brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado”, de Abdias do Nascimento; “Quarto de Despejo”, de Maria Carolina de Jesus Amanda

Valério afirma que militantes do movimento negro, estudantes e pesquisado­res não entendem 13 de maio como uma data a ser comemorada porque não configurou de forma plena a liberdade das pessoas negras. “Configurou sim, uma liberdade jurídica a partir daquele momento, mas como é de praxe, em nosso País, as leis ficam no pape.”

Liberdade é mais: “Significa dignidade e quando a Princesa Isabel assina a Lei Áurea, em 1888 não existiam tantos negros assim, muitos já haviam pagado por sua alforria, já havia um processo de resistênci­a muito forte, a maioria já havia fugido para os quilombos e não existiam tantos negros assim para serem libertos. E também havia uma questão comercial com a Inglaterra, que pressionou o Brasil a transforma­r os escravos em assalariad­os, mas consumidor­es e escravos dos produtos ingleses”, esmiúça.

“Portanto, o povo negro continua sendo escravo - da fome, da matança policial. As novas senzalas são as favelas, pois não foi estabeleci­da à época da lei áurea de políticas públicas para integrar os negros à sociedade e de reparação histórica. Por exemplo, receber salários. A carne negra é ainda a carne mais barata do mercado, como popularizo­u Elza Soares”, analisa.

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Reprodução A obra “Um Defeito de cor” publicado em 2006 pela romancista Ana Maria Gonçalves é um contrapont­o a Castro Alves
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Divulgação/arquivo pessoal Amanda Crispim Ferreira Valerio: “O dia 13 de maio nunca configurou real liberdade para o povo negro”

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