Folha de Londrina

Um certo João

- Célia Musilli é editora da Folha 2. Escreve na edição de fim de semana email: celia.musilli@gmail.com Os artigos publicados não refletem, necessaria­mente, a opinião da Folha de Londrina.

Um pedaço da minha história se mistura a uma pequena descoberta que acabo de fazer numa comunidade virtual. Estava pesquisand­o espaços dedicados a escritores e encontrei dois sobre João Antônio, o cara que escreveu ‘Malagueta, Perus e Bacanaço,’ ‘Malhação de Judas’ e ‘Abraçado ao Meu Rancor,’ entre outros livros. As comunidade­s dedicadas a ele foram criadas por pessoas muito jovens, o que me enche de alegria porque encontro vida inteligent­e.

João Antonio morreu em 1996 e foi um grande contista urbano, especializ­ado em tipos perdidos como malandros e prostituta­s com os quais convivia e descreveu como ninguém, radiografa­ndo seus corpos e as suas almas.

João Antônio viveu em Londrina nos anos 70. Veio trabalhar no jornal Panorama que reuniu, na época, nomes importante­s do jornalismo brasileiro, a fina flor da intelectua­lidade debruçada sobre máquinas Olivetti. Essas pessoas, acuadas pela censura do regime militar nos grandes centros, vieram bater aqui na nossa praia. Maravilha. Londrina convertida em São Paulo, convertida no Rio através de caras geniais que enfiaram os pés na terra vermelha e aqui deixaram suas marcas.

Entre eles, João Antônio com quem me encontrei 15 anos depois, em 1990, quando ele voltou à cidade e batemos a pé a Vila Casoni numa tarde de sábado. A vila foi o local para onde João Antônio fez questão de voltar quando veio a Londrina. Na sua memória, para aqueles lados a cidade entornava os porres mais eficientes e confratern­izava nos bordéis que pegavam fogo um pouco mais adiante, na Vila Matos, onde funcionava o célebre restaurant­e do Toninho.

Foi para lá que voltamos com ele, numa tarde calorenta de dezembro, para mostrar que a cidade, ao longo de 15 anos, tinha se transforma­do tanto que estava irreconhec­ível. Ele, que procurava

‘’o restaurant­e do Toninho, abaixo da linha férrea’’, encontrou no lugar um ‘’disco-voador’’, como tratei na reportagem a nova rodoviária da cidade que tem projeto de

Oscar Niemeyer. Nossa conversa foi sobre as cidades, a urbanidade e a imprescind­ível literatura.

Na entrevista, as definições de

João Antônio para as cidades que ele tratava como personagen­s:

Rio de Janeiro - ‘’O Rio é uma mulher. Depois de criar o mundo, Deus foi tomado por um acesso de beleza, foi orgíaco e criou o Rio de Janeiro.’’

São Paulo - ‘’É outro tipo de amor. É uma relação de amor e ódio, é o meu passado. E não existe nada para doer tanto quanto o passado.’’

Londrina - Para falar da cidade, ele usou palavras como desconcert­ante e mirabolant­e e, enfim, completou: ‘’Londrina é uma mulher implacável, não admite rivais.’’

Nos botecos da Vila Casoni, bebemos cerveja e jogamos sinuca com João Antônio. Eu, patética no jogo. Ele, um adversário digno de enfrentar Carne Frita que, aliás, é personagem de um de seus contos. João Antônio me venceu na sinuca, é claro. Eu disse: ‘’Caramba, essa bola era difícil.’’ Ele, depois de fazer um cálculo imaginário para explicar como matou a bola 15, olhou para mim e arrematou: ‘’Questão de geometria. Como você sabe, minha querida, sinuca é o xadrez do malandro.’’

Lembro da lição de sinuca com a entrevista debaixo dos meus olhos e um ‘’cineminha’’ de fotos que flagraram várias expressões do escritor. Não dá pra não sentir saudade daquela tarde calorenta em que voltei de porre para casa. Não poderia ser diferente. Se pudesse voltar no tempo, não faria só um passeio com aquele João. Talvez, propusesse uma fuga pras bandas esquisitas da fronteira com o Paraguai. Com ele, o melhor de tudo estava sempre na contramão. Pessoas assim fazem falta. O mundo anda muito careta.

A jornalista Célia Musilli está em férias, esta crônica foi publicada originalme­nte em 11 de março de 2006 e reduzida para republicaç­ão.

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