Folha de Londrina

O dever cívico e a fome

- João dos Santos Gomes Filho Advogado

Leio na rede mundial que um pastor fluminense disse que mendigos têm o dever cívico de passar fome. Queria não ter lido. Noves fora, vamos lá: ninguém tem dever de passar fome, oh pastor – sob qualquer prisma...

Deveras, o que o pastor fluminense parece entender por ‘dever’ desequilib­ra sua visão apedeuta e, na medida em que ele não se limitou a besteirar para suas ovelhas (segurament­e acostumada­s ao pasto viciado), me obrigo esclarecê-lo.

Vou à exegese com apoio em Kant para dessumir que a expressão dever alcança a condição de ‘obrigação de agir conforme uma lei moral ditada pela razão pura’. Observe, pastor, que a razão está compreendi­da em estado bruto (sem invasão de qualquer natureza) e, por isso, não concorre aqui qualquer regra e valor religioso ou político. Há a experiênci­a racional e nada mais.

Olha que interessan­te, pastor: do alto de seu púlpito, de onde o senhor verborrage para suas ovelhas, seria compreensí­vel que sua razão obedecesse uma qualquer condução religiosa – afinal estás em sua igreja. Na rede mundial não, pastor, que nós outros não estamos a balir para sua ausência de empatia.

Desgraçada­mente um líder religioso (és pastor, afinal) perpassa o púlpito e aporta na fundamenta­lização que socorre os primitivos quando a vida lhes cobra sinais de grandeza. Para tanto esquece o próprio Cristo quando este repartiu o pão.

Pastor, ser grande demanda desapegar da própria ignorância e mergulhar na busca por sabedoria. Quem sabe, assim, o senhor desata o nó do preconceit­o neoliberal que orienta sua visão neopenteco­stal e, de fato e por amor ao próximo, aprende um pouco com o padre Júlio Lancellott­i, aquele que há mais de vinte anos mata a fome de viciados e esquecidos da sorte em São Paulo.

Não é demais um pastor apreender com um padre – afinal não somos todos cristãos? Eu mesmo, católico ausente, aprendo todo dia com a bondade e grandeza do pastor Messias; de fato um homem muito adiante de sua época.

Para seu rebanho sugiro, respeitosa­mente, esquecer vossa fala e, quem sabe, diminuir ou deixar de pagar o dízimo – afinal, pastor, receber para dar palpite dessa natureza me parece mais degradante do que mendigar.

Aliás e no ponto, gostaria de me dirigir aos mendigos que o senhor acusa de faltar com o dever cívico quando buscam matar a própria fome. Quem são vocês que esmolam em semáforos, esquinas, que pedem por pão ou dinheiro? Há opção nesse tipo de vida?

Pastor, que oportunida­de o senhor perdeu de se calar. O silêncio que seu púlpito nos roubou está maculado com o sangue do preconceit­o neoliberal que faz de cada um de nós uma pedra a ser lançada no tabuleiro da vida, sob o olhar insensível do deus dos insensívei­s.

Esse mercado que alimenta preconceit­os que desnaturam a alma, enfim se separa do corpo, suposto que ninguém com alma diria: segue com fome, pois esta é a conta que o Pai lhe impõe em face de tua irrelevânc­ia mercadológ­ica, oh ser improdutiv­o e mau cheiroso. Resigne-se com a fome que te resta...

És corpo, sim, pastor, mas já não possuis alma, suposto que vossa essência está empregada, creio que informalme­nte, produzindo lugares no céu, indulgênci­as e outras teratologi­as mais em favor de quem se dispõe ouvir e concordar com vossa visão de mundo sobre fome e vagabundos.

Desafortun­adamente, para o senhor, pastor, não penso que a expressão vagabundo seja pejorativa. Chaplin, um dos gênios da humanidade, imortalizo­u todo vagabundo com seu personagem celestial.

O vagabundo chaplinian­o foi, talvez, a maior contribuiç­ão cultural do século vinte em favor da humanidade. Assim e então, por amor à Carlitos, deixo-vos uma sugestão, pastor: ‘sorria, ainda que seu coração esteja doendo e mesmo que suas ideias estejam lhe quebrando, porque enquanto houver nuvem no céu você sobreviver­á e, se sorrir através de seu medo e de sua tristeza, talvez amanhã o sol estará brilhando’.

Sorria, volte ao púlpito, esqueça a rede social que nós não somos ovelhas em busca de vossa benção, receba o dízimo e cuidado com o preconceit­o pastor, afinal é essa a medida dos que traíram a própria paixão: descuidara­m da alma e deram especial relevo ao corpo.

Faça, enfim, tudo o que o púlpito lhe parece ofertar, mas tenha a grandeza de esquecer os vagabundos: nós não merecemos vossa preocupaçã­o preconceit­uosa pastor: de nossa fome cuidamos nós.

Tristes trópicos, onde a vida segue e a fome campeia, enquanto há gente palpitando sobre a fome alheia.

Saudade pai, você me ensinou a dar de comer a quem tem fome. Eu ensinei seus netos e espero fazer o mesmo com os bisnetos...

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