Folha de Londrina

Educação domiciliar divide governo, defensores e especialis­tas

A possibilid­ade de educar os filhos somente em casa gerou dois projetos de lei antagônico­s quanto ao nível de regulação

- Raphael Preto Pereira

São Paulo - A possibilid­ade de que pais eduquem seus filhos somente em casa dividiu a base do governo e gerou dois projetos de lei que se antagoniza­m quanto ao nível de regulação que a prática teria. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em 2018 que quem quiser optar por isso não comete crime, mas tem que seguir normas que seriam definidas pelo Legislativ­o.

Dois projetos de lei que procuram disciplina­r o homeschool­ing estão sendo discutidos no Congresso.

O primeiro, relatado pela deputada Luísa Canziani (PSDPR), libera a atividade com regulações como a necessidad­e de matrícula em instituiçã­o de ensino e avaliações periódicas. Além disso, ele prevê a obrigatori­edade de que um dos pais da criança educada em casa tenha curso superior.

Até quem se posiciona contra o ensino em casa, por princípio, questiona as limitações aventadas no projeto de lei em apreciação no Legislativ­o. É o caso de Mariza Abreu, consultora em educação. “Sou contra a liberação de qualquer forma que seja, mas exigir que um dos pais tenha faculdade torna essa ideia elitista”, afirma.

O outro projeto, protocolad­o em 2019 pelas deputadas do União Brasil Bia Kicis (PL-DF), Chris Tonietto (PL-RJ) e Caroline de Toni (PL-SC), pretende incluir um parágrafo no artigo 246 do Código Penal explicitan­do que educar os filhos em casa não é crime. Hoje, a punição prevista é de 15 dias a um mês de detenção, além de multa.

Ele nasceu a partir de um descontent­amento de setores defensores da educação domiciliar que julgavam que o projeto de Canziani tinha regras demais para autorizar a prática.

“Temos, aproximada­mente, 15 mil estudantes entre 4 e 17 anos, segundo dados da Aned (Associação Nacional de Educação Domiciliar). Ela já acontece, nós temos urgência em tratar desse assunto, as famílias estão desamparad­as e contam conosco, contam com a nossa voz”, explica Kicis.

O professor Ulisses Schwarz, do Instituto Brasiliens­e de Direito Público (IDP), explica que o STF proibiu o que ele chama de “homeschool­ing exclusivo”, ou seja, “aquele feito sem nenhuma supervisão ou acompanham­ento do Estado, ainda que indiretame­nte”.

O educador Carlos Roberto Jamil Cury, especialis­ta no direito à educação, questiona o projeto de Kicis: “no mundo inteiro, em que a educação doméstica é autorizada, há cadastro, regulação e avaliação”. Ele reforça que toda a luta da educação brasileira desde a Constituiç­ão de 1988 é pela universali­zação do acesso à escola e, assim, qualifica a liberação do “homeschool­ing” como um retrocesso.

“Era permitido [o ensino domiciliar] na época do Império, e foi sofrendo sanções à medida que as legislaçõe­s foram evoluindo”, explica. “O que está por trás desses projetos é uma ideia de que a família tem mais importânci­a que a escola na hora de educar, mas, na verdade, são papéis complement­ares. O que a Constituiç­ão e a LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação] propugnam é uma solidaried­ade entre escola e família.”

A proposta de Kicis foi aprovada na CCJ (Comissão de Constituiç­ão e Justiça) da Câmara e espera para ser votada no plenário sem data definida.

A de Canziani aguarda a constituiç­ão de uma comissão temporária, segundo a Câmara. A assessoria da deputada ofereceu informaçõe­s sobre o projeto, mas negou entrevista. A demora para a tramitação da pauta já causa desconfian­ça em algumas lideranças pró-ensino doméstico.

Jonatas Dias Lima, presidente da Associação de Famílias Educadoras do Distrito Federal, reconhece que o projeto apresentad­o pelas deputadas do União Brasil ajuda as famílias que praticam educação domiciliar. “Muitos reclamam da inseguranç­a jurídica, então é claro que é um auxílio. Mas, na nossa visão, o projeto que atende a decisão do Supremo e regulariza a nossa situação é o projeto da deputada Canziani”, afirma.

Ele se queixa de uma falta de interesse em fazer a pauta andar. “O governo vive colocando a pauta nos itens prioritári­os, mas não se empenha de fato”, lamenta.

Rick Dias, presidente da Aned (Associação Nacional de Educação Domiciliar), diz que é necessário “o mínimo de regulação possível para a educação domiciliar e estamos longe disso”. Para ele, o clima político para a aprovação do projeto “não é bom”.

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IStock Uma estratégia de defensores da educação domiciliar é aprovar projetos nas assembleia­s estaduais, já que o STF não especifico­u qual ente federativo tem competênci­a para legislar sobre o tema

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