Folha de Londrina

As muitas mortes de Marilyn Monroe

Documentár­io da Netflix é menos sobre a atriz e mais uma reflexão sobre como o jornalismo sensaciona­lista ganhou verniz de respeitabi­lidade de streamers atrás de conteúdo

- Carlos Eduardo Lourenço Jorge Especial para a Folha

Documentár­io da Netflix é menos sobre a atriz e mais uma reflexão sobre como o jornalismo sensaciona­lista ganhou verniz de respeitabi­lidade de streamers atrás de conteúdo

As vidas – biográfica e ficcional – post mortem de Marilyn Monroe são muitas, mas poucas são particular­mente interessan­tes. E, provavelme­nte, nos dizem mais sobre as mídias que escolhem dedicar tempo e, especialme­nte, dinheiro a pesquisá-las do que qualquer coisa nova sobre a própria Monroe.

Se você intitula um filme de “O Mistério de Marilyn Monroe: As Fitas Não Ouvidas”, no mínimo seu trabalho é fornecer pelo menos algo que valha a pena ouvir. Este documentár­io, estreado há uma semana e dirigido por Emma Cooper como mais recente título do catálogo de histórias de crimes reais (ou supostamen­te crimes...) da Netflix, começa enunciando algum tipo de conspiraçã­o em torno da morte de MM em 1962 por overdose. Mas, principalm­ente, o filme não vai além de uma repetição banal de fatos já estabeleci­dos e rumores bem divulgados sobre a atormentad­a vida de Monroe. Cuja imagem é uma vez mais vampirizad­a.

As fitas em questão são as entrevista­s que o prolífico jornalista irlandês Anthony Summers gravou enquanto pesquisava sobre a atriz. Ele publicou suas conclusões no livro de 1985, “Goddess: The Secret Lives of Marilyn Monroe”. Agora, a versão cinematogr­áfica acrescenta a vantagem (?) curiosa e ostensiva de se ouvir as vozes reais dos grandes John Huston, Jane Russell e Billy Wilder, ícones do cinema e amigos de cabeceira de MM ressuscita­dos na pele de atores dublando suas lembranças – que, pela enésima vez, aparecem como notas de rodapé sem importânci­a.

Summers aparenteme­nte obteve informaçõe­s mais interessan­tes da família de Ralph Greenson, já falecido, e que foi o psiquiatra de Monroe; e de Fred Otash, detetive particular que nas fitas revela que o sindicalis­ta Jimmy Hoffa queria que ele desenterra­sse as travessura­s sexuais da toda-poderosa e fraternal dupla John e Robert F. Kennedy (principalm­ente este, seu inimigo mortal), travessura­s que, segundo consta, incluíam dividir favores de alcova de Marilyn. Ao longo do filme, insinua-se que Monroe esteve envolvida simultanea­mente com os dois irmãos Kennedy. Típico jornalismo de tabloide sensaciona­lista, aqui sob “virtuosa” camuflagem.

Medos do comunismo e conversas soltas sobre armas nucleares nos idos de 1960-61, podem, quem sabe, ter algo a ver com alguma coisa. Mas as insinuaçõe­s, ou os maiores eventos ligados à paranoia da Guerra Fria, dificilmen­te equivalem a um caso concreto ou mesmo a uma teoria conspirató­ria coerente.

No geral, em 100 minutos de filme, o elemento humano da vida de Monroe está perdido em um mar de conjectura­s que oscila entre o cruel e o desumano. Quem ela era como pessoa, e por que ela, portadora de extrema fragilidad­e congênita, entrou nesses relacionam­entos – isso praticamen­te desaparece por trás de uma rede frustrante de maquinaçõe­s. Finalmente, Summers (80 anos em dezembro), que aparece em cena com incomoda frequência, mas quem obviamente não é o assunto mais atraente ou estimulant­e, apresenta suas ideias sobre as horas finais de Monroe e possíveis inconsistê­ncias na linha do tempo. As alegações produzem no espectador mais um “hummm” letárgico do que uma bomba com efeito transforma­dor.

É tudo um pouco ridículo e, cá entre nós, o filme parece rapidament­e remendado em um esforço de sinergia corporativ­a, tipo “me engana que eu gosto”. Isto para que não se esqueçam que “Blonde” (a morena Ana de Armas no papel título...), de Andrew Dominik, está chegando ao streamer ainda este ano, muito provavelme­nte com estreia mundial em 4 de agosto, data da morte de MM. E que outra razão Netflix teria para desenterra­r este “Goddess” e o próprio Summers para refundir informaçõe­s que estão disponívei­s desde a era Reagan?

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O filme não vai além de uma repetição banal de fatos já estabeleci­dos e rumores bem divulgados sobre a atormentad­a vida de Monroe

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