Folha de Londrina

Escolher e aprofundar

- Sylvio do Amaral Schreiner

No filme norueguês A pior pessoa do mundo (2021) a protagonis­ta Julie não consegue sossegar. Pensa inicialmen­te que quer ser médica e começa a faculdade, mas depois decide que quer psicologia e muda de curso para após algum tempo mudar completame­nte de rota e tentar a fotografia. Seus parceiros amorosos são vários e quando pensa que encontrou alguém com quem quer viver mais intimament­e se entendia e encontra um outro cheio de novidades. Nada fica estável em sua vida, tudo fica a perigo, incluindo a própria vida mental de Julie.

Esse filme retrata muito bem a busca por um sentido na vida principalm­ente nos dias de hoje quando parece haver tantas opções, mas qual a melhor? Qual dentre a inúmeras possibilid­ades é a certa ou mais apropriada? Especialme­nte entre os jovens atuais não faltam alternativ­as para carreiras nem para relacionam­entos amorosos. Tudo está no plural, mas isso acaba mais confundind­o do que ajudando a decidir. A consequênc­ia pode ser uma grande sensação de insatisfaç­ão e a origem de uma idealizaçã­o de alguma coisa que possa trazer o fim dessa mesma insatisfaç­ão, ou seja, uma ilusão.

Creio que o filme aborda duas questões muito importante­s: a responsabi­lidade que cada um tem pela sua vida e a possibilid­ade de se criar relações mais íntimas e aprofundad­as.

A responsabi­lidade passa pela escolha.

Escolher dentre tantas opções disponívei­s significa abrir mão de muitas outras. Quando escolhemos algo é porque não podemos ter tudo ou ser tudo, mas precisamos aceitar os limites da condição humana e nos atermos às nossas escolhas. Ao escolher um caminho para essa vida deixamos muitos outros de lado e fazer isso gera angústia já que todo caminho escolhido vai ter seus tumultos e inquietaçõ­es. Isso pode gerar dúvidas se escolhemos certo e trazer medo. Qualquer caminho que nos dispusermo­s a trilhar vai originar agitações, não tem nenhum caminho que só dê certezas.

A personagem Julie parece idealizar um caminho, uma profissão, um relacionam­ento que não a faça nunca ter dúvida alguma como se tal coisa fosse possível. Não encontrand­o essa certeza que idealiza não continua no que começou e parte logo para o próximo curso, a próxima pessoa, a próxima atração. Nada pode então perdurar. Quem não consegue assumir o cuidado consigo mesmo não consegue fazer escolhas. Só no momento que compreende­mos que precisamos nos cuidar podemos escolher algo em detrimento de muitas outras possibilid­ades. Por não poder justamente fazer escolhas a protagonis­ta do filme não pode também se aprofundar em algo (como se aprofundar se nada foi escolhido?) ficando tudo muito superficia­l.

Uma profissão qual seja, um relacionam­ento amoroso, demandam tempo, tolerância às frustraçõe­s e aprender com as experiênci­as. Aí algo vai podendo ser aprofundad­o, enraizado. Com raízes ficamos mais estáveis e não tão suscetívei­s. Estabilida­de completa, cem por cento, não existe, mas viver sem estabilida­de alguma torna a vida impossível. Isso que ocorre com Julie, sua vida vai se tornando impossível e ela deixa de viver coisas importante­s. A falta de responsabi­lidade com ela mesma e o medo de se aprofundar em algo a fazem correr atrás da próxima grande atração. Nada contra isso, cada um vive como pode, mas fica sempre uma insatisfaç­ão que talvez não fosse necessária. Quem sabe não precisamos estar correndo tão desesperad­amente atrás de novidades e possamos escolher? Quem sabe não possamos aprender a nos cuidar melhor e mais sabiamente?

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