Folha de Londrina

A ilusão de liberdade nos olhos do prisioneir­o

“A Mulher das Dunas”, romance de Kobo Abe, mostra como o absurdo pode ser transforma­do em sensatez

- Marcos Losnak Especial para a Folha

Segundo a mitologia grega, os homens possuem liberdade, mas os deuses possuem outro tipo de liberdade. Os homens não possuem a mesma liberdade que os deuses. Os mortais seriam livres para ser inventivos dentro da plenitude da repetição e da monotonia. Livres, mas sempre dentro das regras.

Em seu romance “A Mulher das Dunas”, o escritor japonês Kobo Abe (1924 – 1993) evidencia a restrição de liberdade dos homens que se consideram livres como paradoxo. Lançado pela editora Estação Liberdade, trata-se do segundo livro do autor publicado no Brasil. O primeiro, “O Rosto de Um Outro” foi lançado em 2015 pela extinta editora Cosac Naify.

Formado em medicina, Kobo Abe nasceu em 1924, em Tóquio, e fundamento­u sua literatura no absurdo, na tentativa de representa­r a existência moderna em suas situações bizarras. Publicado originalme­nte em 1962, “A Mulher das Dunas” difere tanto das referência­s da literatura japonesa tradiciona­l quando da literatura japonesa moderna. Pode ser descrito como um romance claustrofó­bico. Uma agonia cíclica e intermináv­el. Uma alegoria sobre a condição ilusória da liberdade.

A obra narra a trajetória de Niki, um professor do ensino básico que, nas horas vagas, se dedica a colecionar insetos. Em sua missão de entomologi­sta, existe secretamen­te um desejo de eternidade: “O que os colecionad­ores almejam não é enfeitar com extravagân­cia sua caixa de espécimes, tampouco satisfazer um interesse taxionômic­o, e muito menos buscar ingredient­es para remédios. Para colecionad­ores de insetos, existe uma alegria mais singela, mais direta. É a descoberta de uma nova espécie.”

E a vaidade se apresenta com todas as letras: “Se ao menos isso ele conseguiss­e, ao lado do longo nome científico, em latim, apareceria então escrito nas enciclopéd­ias entomológi­cas seu próprio nome em fonte itálica, talvez ficando assim preservado de maneira mais ou menos perpétua. Ou seja, se pudesse permanecer na memória das pessoas, ainda que tomando emprestada a forma de um inseto, então valeria o esforço.”

Na tentativa de deixar uma marca no mundo, Niki empreende uma viagem ao litoral para caçar insetos raros. Parte para uma região coberta por dunas onde acredita poder encontrar uma nova espécie que vive nas areias da restinga.

Entretido em sua procura, acaba perdendo o trem de retorno. Sem alternativ­a, resolve pedir pouso numa pequena vila de pescadores. Acolhido pelos habitantes do lugar, Niki é instalado numa casa situada dentro de uma depressão no meio das dunas. Recebido por uma mulher, adormece em uma precária casa de madeira rodeado por paredões de areia por todos os lados.

E aquilo que seria estadia de uma noite, se transforma em uma temporada de meses.

Graças a uma série de absurdos, Niki não consegue deixar o lugar. Para sobreviver, precisa auxiliar a mulher a recolher cotidianam­ente baldes e baldes de areia trazida pelo vento que ameaçam engolir a casa diariament­e.

Em “A Mulher das Dunas”, Kobo Abe coloca o personagem no papel de Sísifo, figura da mitologia grega que recebe como punição um trabalho cansativo, incessante e infrutífer­o. Niki precisa se conformar em viver realizando uma mesma tarefa todo santo dia: retirar da casa a areia trazida pelo vento do dia anterior. E no dia seguinte fazer o mesmo. Um trabalho infindável que os nativos do lugar realizam sem questionam­ento em nome da sobrevivên­cia.

Na tentativa de sair do buraco na areia, Niki cria todas as soluções possíveis. Revoltado com a situação, inventa todo tipo de artimanha para sair do lugar e voltar para casa. Mas nunca obtém sucesso. Sua agonia se multiplica a cada tentativa frustrada de superação.

E assim ele permanece numa espécie de prisão inexplicáv­el ao longo de meses, ao longo de anos. E um belo dia, cansado de tanta resistênci­a, de tanta batalha, machucado de tanta frustração, torna-se um dócil habitante do lugar.

Em “A Mulher das Dunas”, Kobo Abe mostra que todo e qualquer absurdo pode ser normalizad­o como sensatez ao longo do tempo. Seja entre vaidades ou eternidade­s. E que a resistênci­a e a desobediên­cia podem ser minadas para que o absurdo se converta em normalidad­e. Até chegar o dia em que o prisioneir­o, com afinco, esmero e afeto, começa ele próprio construir as paredes em que deve ficar enclausura­do. Tijolo por tijolo, ferragem por ferragem, cimento por cimento, pedra por pedra.

SERVIÇO

“A Mulher das Dunas” Autor – Kobo Abe Editora – Estação Liberdade Tradução – Fernando Garcia Paginas – 288 Quanto – R$ 59

Para colecionad­ores de insetos, existe uma alegria mais singela, mais direta. É a descoberta de uma nova espécie

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Divulgação Formado em medicina, Kobo Abe fundamento­u sua literatura no absurdo na tentativa de representa­r a existência moderna em suas situações bizarras
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Reprodução Em seu romance “A Mulher das Dunas”, o escritor japonês Kobo Abe evidencia a restrição de liberdade dos homens que se consideram livres como paradoxo

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