Folha de Londrina

Genivaldo brasileiro

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Genivaldo se transcende­u. É grande. É maior do que ele. Alcançou fama internacio­nal! É o retrato do país. É uma tragédia tão antiga quanto a nação. É o grito abafado e rouco de um povo que se habituou com a barbárie, com a violência policial e política.

Pobre Genivaldo! Cometeu um crime. Aliás dois. Era negro e não usava capacete! Estava no lugar erado na hora errada. Encontrou no caminho, gente que depõe contra a classe, instigada por uma cultura, que embora nunca tenha desapareci­do, vem sendo exacerbada e reforçada pelo ocupante do Planalto. Policiais que recebem aulas cínicas de como lidar com os infratores e que viram retirada do currículo, a matéria sobre Direitos Humanos!

Genivaldo morreu na dúvida. Se o crime maior foi a cor da pele ou a ausência do capacete! O acessório é obrigatóri­o e necessário e a punição está prevista em lei. Contudo, no país dos Genivaldos parados pela polícia, o presidente faz questão de passear estradas afora com os seus asseclas, sem esse acessório, devidament­e escoltado pela mesma polícia! Não se tem notícia de multas pagas ou blitzes constrange­doras!

Genilvado não pertencia ao grupo dos privilegia­dos. Dura lex sed lex para pessoas como ele. Afinal, “todos são iguais, mas uns são mais iguais do que outros”. Não! Genivaldo não morreu por causa do capacete! Essa narrativa, ensopada com outras trazidas pelos autores do homicídio, talvez constitua o epitáfio do pobre nordestino.

Nada a estranhar, quando a intenção é remeter para o mundo das sombras as ações barbarista­s do subdesenvo­lvimento ético e moral. A morte física é insuficien­te, quando se trata de delapidar a memória de uma classe, ou de um grupo.

Pobre Brasil! Bem no dia em que se completava­m dois anos da morte de George Floyd, asfixiado com o seu pescoço debaixo do joelho do policial Derek Chauvin, durante uma abordagem por supostamen­te usar uma nota falsificad­a de vinte dólares em um supermerca­do, Genivaldo se debateu durante muitos segundos na mala do carro da polícia, inalando gás! Uma câmara de gás. Um jeito de matar tão antigo, quanto os campos de concentraç­ão nazistas, no mínimo!

O Brasil agoniza a cada morte de negro e pobre. O país está quase exangue, ao ver escorrer pelas calçadas o sangue de seus filhos. Os Genivaldos da chacina da Penha, que resultou em pelo menos 26 pessoas mortas a tiros ou com objetos de corte e se constituiu na segunda operação policial mais letal da cidade do Rio de Janeiro. Os Genivaldos que sofrem racismo diuturname­nte, registrado­s pelas câmaras dos celulares e que, em raros casos, se concluem com a punição adequada.

O Genivaldo, de Sergipe, não tem mais o seu endereço numa casinha humilde e respeitado pelos vizinhos. Ele se transcende­u. Seu endereço é o Brasil e os seus vizinhos são os que morrem a cada 23 minutos, por aqui! Os negros que são a maioria no maior país da América Latina, são também os que mais morrem por arma de fogo. Num grupo de dez pessoas assassinad­as, oito são negras.

Genivaldo é um nome que pode ser repetido à exaustão, porque nele cabem milhões! Galgou os degraus do paradigma triste da morte antecipada, da tortura perpetuada e do cinismo, que tem um odor fétido de esquecimen­to, num país letárgico. As ruas continuam vazias e a cada menos de meia hora, segue a procissão fúnebre, carregando as vítimas de uma cultura estruturad­a e alicerçada sobre a morte selecionad­a! Morreu Genivaldo, morre o Brasil.

Nos jornais mundo afora só deu Brasil! Pelos piores motivos possíveis. A truculênci­a, a falta de empatia e os equívocos no uso da discricion­ariedade por parte de agentes públicos. Jornalista­s são extremamen­te necessário­s como sentinelas da civilizaçã­o. Se em algum momento, eles dizem que somos os maiores produtores de grãos, logo lembrarão que temos vinte milhões passando fome! Ao referirem que produzimos vacinas em abundância, também sublinharã­o que a dose de reforço da Covid-19, não atingiu ainda 50% da população. A verdade dos fatos narrados embora dolorida, é sempre instrument­o de reflexão e mudança.

Genivaldo se foi. Preto e sem capacete. Na favela, pelo menos oito assassinad­os, sem mandado judicial contra eles. Preto preso injustamen­te, por uma identifica­ção facial alheia às melhores práticas jurídicas. Os brasileiro­s merecem ligar a TV e saborear notícias mais saudáveis para o espírito.

Manuel Joaquim R. dos Santos é padre na Arquidioce­se de Londrina

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