Folha de Londrina

O grito da fome nas ruas

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Dias atrás, durante uma caminhada de fim de tarde, vi um cidadão comendo lixo em plena Avenida Higienópol­is, no centro charmoso de Londrina. A perplexida­de antecede toda reação. Não soube como agir. Logo em seguida, uma senhora se aproximou dele e lhe ofereceu pão. Acanhado, o rapaz resistiu. Por fim, aceitou o pão e ofereceu bençãos à nobre mulher.

A atitude daquela distinta senhora nos alivia. Ao mesmo tempo, nos faz imaginar que temos feito pouco para combater a fome. O Brasil, de volta ao mapa mundial da fome, acumula gente nas ruas em busca de alimento, qualquer um, desde que mantenha corpos e sonhos em pé.

Ando com “trocados” no porta-luvas do carro. De farol em farol, dou dois ou cinco reais a quem diz ter fome, com um grito estampado em uma placa improvisad­a de papelão. Não há trocado que baste. A cada novo dia, mais gente ocupa as ruas e praças em busca de comida, alento, algum motivo para seguir na vida. Para piorar, enfrentam a aporofobia, esse nojo de pobres que se insinua sobre cada indivíduo numa sociedade de cruel passado escravocra­ta.

Segundo dados recentes, 33 milhões de brasileiro­s passam fome todo dia, e aproximada­mente 60 por cento da população (cerca de 125 milhões de pessoas) sofrem com algum nível de inseguranç­a alimentar, ou seja, comem mal, comem pouco ou nunca sabem quando poderão comer mais uma vez. Como é possível uma coisa dessas em pleno 2022?

Não é novidade que optei por me tornar sociólogo graças ao exemplo de vida de Herbert de Souza, o Betinho (escrevi sobre isso em 06/09/2017). Eu era adolescent­e na década de 1990 quando o via na TV analisar o fenômeno da fome e apontar saídas para o grave problema crônico do país. Ele criou uma campanha para arrecadar e distribuir alimentos, convencido de que a chaga da falta de alimento poderia ser sanada através da solidaried­ade coletiva. Tratava-se, acreditava Betinho, de uma tomada de consciênci­a. Cresci em meio a movimentos cidadãos que tomaram a decisão de mudar o Brasil – isso fez toda a diferença nas escolhas que fiz para minha própria vida.

Hoje, com o país de cabeça para baixo, quase nada resta daquele clima de crença na democracia e ações coletivas que pretendiam erguer uma nova nação. Herdeiro das lutas políticas e movimentaç­ões culturais dos efervescen­tes anos 60 e 70, o Brasil das décadas seguintes preferiu o diálogo e o consenso à apatia e o ódio. Num misto de tristeza e completa desorienta­ção, o presente agora é uma incógnita, tal qual a volta da fome num país que produz alimentos como bem poucos outros no globo. Onde foi parar a disposição para erguer com as mãos uma terra linda e livre?

A fome é um sinal de que a estrutura do país vai mal. Mas não só isso: o modo como nos tornarmos cidadãos carece de utopias. Reina em todo canto um enorme mal-estar, uma sensação de que tudo acabou e o que resta é uma ingrata batalha de todos contra todos. Na ponta da desesperan­ça, desiludida, grita a fome.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL cidadefutu­ra@folhadelon­drina.com.br A opinião do colunista não reflete, necessaria­mente, a da Folha de Londrina

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