Folha de Londrina

O aborto e o poderio de juízes e juízas

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Tomar ciência da trajetória de mulheres que, por lei, têm o direito ao aborto e precisam de ajuda para ir a outro país interrompe­r a gravidez, permite-nos refletir sobre o quanto estamos distantes de ser uma nação que respeita e cuida da saúde de suas mulheres. O site The Intercept Brasil fala da triste experiênci­a de Aline que, após o nascimento de sua primeira filha, ficou na fila do SUS por quase um ano para colocar um DIU, não conseguiu e acabou engravidan­do pela segunda vez.

Seu sofrimento começou na primeira gestação, durante a qual foi contaminad­a pela Covid-19, tendo tido um AVC durante o parto que lhe deixou sequelas e uma paralisia por seis meses. Após o parto, ficou 7 dias na UTI e teve surtos psicóticos durante o puerpério. A Covid atingiu também o feto e fez com que a bebe só fosse para casa após dois meses de internamen­to. Em 24 de maio de 2021, quando Aline estava na 14ª semana da segunda gestação, foi aberto um processo junto ao Judiciário de Alagoas, para a autorizaçã­o do aborto pelo SUS, movimento esse não necessário, porque o aborto é garantido por lei quando a mulher corre risco de vida.

O marido teve que deixar o emprego, como Jovem Aprendiz, para cuidar da filha de um ano e da esposa. Segundo o Intercept, “os remédios controlado­s que a jovem deveria tomar – o anticonvul­sivante e ansiolític­o Clonazepam e o antipsicót­ico Olanzapina – têm uso proibido durante a gravidez, pelo risco de malformaçã­o fetal. Fora isso, o quadro de eclâmpsia, pressão alta durante a gestação, seguida de convulsões, acendia um alerta sobre o risco à vida da gestante durante um próximo parto.”

Somente dois meses após a abertura do processo, os juízes concluíram, manifestan­do-se contrários. O Milhas Pela Vida das Mulheres levou Aline à Colômbia para fazer o aborto. O Milhas é “Uma rede de mulheres proativas advogando pelo direito de escolha no Brasil”, que pode recorrer à Argentina e também ao México. Segundo seu site, com base em dados da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) e do Ministério da Saúde, desde setembro de 2019, por causa de complicaçõ­es ligadas ao aborto clandestin­o e inseguro, 3.874 mulheres morreram e 661.888 foram internadas pelo SUS, com um gasto superior a 13 milhões de reais.

Só juízes são desumanos com as mulheres que têm o direito ao aborto dentro da lei? Não. O caso divulgado na mídia, neste mês, envolvendo a juíza Joana R. Zimmer, de Florianópo­lis, comprova. Ela manteve, em um abrigo, uma menina de 11 anos, vítima de estupro e grávida, para evitar que fizesse um aborto autorizado. A mãe, em desespero, pedia pelo aborto. Estou

certa de que se a menina fosse filha ou irmãzinha da juíza, ela não teria impedido o aborto e nem mesmo feito a odiosa pergunta: “Você suportaria ficar mais um pouquinho?”.

A promotora Mirela D. Alberton também contribuiu para acentuar a tortura. É algo inimagináv­el: duas mulheres com formação universitá­ria, sem a mínima sensibilid­ade e humanismo diante de uma criança de 11 anos naquela situação. A menina passou por violência e tortura psicológic­a e física várias vezes: primeiro, ao ser estuprada; depois, ao ver e sentir gerar, em seu corpo ainda criança¸ um feto; em seguida, nas instituiçõ­es por onde passou, como o HU, por exemplo, em que não foi socorrida conforme lhe era de direito, com a interrupçã­o da gravidez; e, finalmente, nas mãos das profission­ais do Direito, mal preparadas e desumanas. Para impedir o aborto de um feto, a juíza deteriorou a saúde mental da menina e provocou o abortament­o de sua infância e de sua adolescênc­ia.

Para pensar mais sobre as implicaçõe­s do poderio de que aqui trato, sugiro o vídeo do Youtube: Uma história Severina. Nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF), um casal pernambuca­no, pobre e humilde, enfrentou um longo martírio e só conseguiu aprovação para interrupçã­o da gravidez no sétimo mês de gestação, em maio de 2005.Triste saber que histórias cheias de torturas, como essas, não são raridades, mas se repetem continuame­nte.

Triste saber que histórias cheias de torturas, como essas, não são raridades, mas se repetem continuame­nte

Mary Neide Damico Figueiró é psicóloga, doutora em Educação, professora aposentada da UEL e autora de 4 livros sobre Educação Sexual

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