Folha de Londrina

O mito de Pandora!

- João dos Santos Gomes Filho, advogado

Vejo, com sangue nos olhos, a foto do indiozinho yanomami subnutrido à morte. Minutos antes, havia visto (Instagram) uma caterva atacar o padre Júlio Lancellott­i, porque o pároco segue dando de comer aos famintos.

Essa simetria assimétric­a se apossou do homem que sou, golpeando meus dias de convívio com a horda fascista a criação humanista que mereci e vou honrar ao último suspiro – quem sabe para apagar a vergonha dolorosa do indiozinho morto de fome pela atuação do desgoverno passado, que deu um boi às piranhas para passar sua boiada neoliberal.

Há mais miséria entre o céu e a terra do que sonha nossa pálida tentativa empática de ver no outro o reflexo de nossos anseios. Tudo que não é luz se esvai na sombra covarde da imagem que me tomou a retina, povoando os famélicos inventos de meus sonhos na expressão de entrega daquele pequeno índio.

Os fascistas, ao levarem a miséria sócio econômica do garimpo clandestin­o e predatório para as terras indígenas, abandonand­o ativismos e políticas públicas que protegiam aquele povo, conduziram os originário­s ao caminho da morte, pavimentad­o na violência de ver nos peles vermelhas um desvalor econômico e não pessoas de carne e osso – muito osso ultimament­e...

Ao tratar o yanomamis enquanto pedra de tropeço de suas pretensões econômicas, os fascistas que lhes negaram proteção e garantia condenaram os que já se foram. Esse entendimen­to me amarga a boca e nega os magros sonhos de convívio que aprendi desde pequeno em casa.

Não que eu esperasse uma ópera de proteção às minorias, suposto que valor e empatia no Brasil de nossos dias resgataram (para mim) o mito de Pandora, a primeira mulher, naquilo que o esgoto moral dos que não se condoem com o próximo está à céu aberto e vem alimentand­o a narrativa estabeleci­da desde sempre: é preciso afastar o PT; vamos nos tornar uma Venezuela; vão invadir a sua casa e tirar você de lá; irão acabar com a propriedad­e privada – dentre outras mentiras mais.

Para o gado iletrado que não conhece o significad­o das palavras que usa, o mito de Pandora, por sua versão mais divulgada, remete a criação de uma mulher (Pandora) a mando de Zeus, com o propósito de se vingar da humanidade. Aqui, vale lembrar que Zeus estava enraivecid­o com a gente porque Prometeu deu aos homens o segredo do fogo – que bobagem Zeus!

Ao ser enviada à terra, Pandora levou consigo um jarro (que muita gente chama de caixa – daí a origem da expressão: caixa de Pandora), com a recomendaç­ão de não abrir o tal pacote. Curiosa feito as pessoas criadas com um propósito, Pandora abriu sua caixa, libertando os males então desconheci­dos do homem – doenças, guerras, ódio, mentira, fascismo, homofobia, xenofobia, racismo. Desesperad­a, Pandora consegue fechar a caixa, mas mantem em seu interior a esperança.

A esperança prisioneir­a em uma caixa faz pensar no país que estamos, no modelo de civilizaçã­o que queremos, quando valores tão antagônico­s (morte e vida) são baralhados no xadrez da história, em tempo de não significar­em o que representa­m, e sim o que a narrativa da extrema direita pretenda que signifique­m.

Ao abandonar o dever de cuidado com os povos originário­s traímos nossa essência, naquilo que conviver reclama não deixar seguimento­s sociais para trás.

As muitas mortes dos yanomamis, leio nas mídias digitais, sucederam os vários e diversos pedidos de socorro da comunidade e foram causadas diretament­e pela intervençã­o política que se deu na Funai. Sabe aquela conversa fiada da irrelevânc­ia dos povos originário­s em face das necessidad­es econômicas da extração das riquezas de suas terras? Então, deu nisso!

Zero de empatia não faz um país. Quando muito faz uma milícia. E é o que tentamos deixar de ser de primeiro de janeiro para cá, suposto que o exílio em que nos encontráva­mos em relação ao outro conduziu a uma ‘solidão de todos’, parindo o ovo que eclodiu.

Nesta altura, não resta de mim senão lembranças e lamentos; lembranças do que perdi, lamentos por não ter feito um enfrentame­nto ainda maior. A dor dos yanomamis, enquanto dor originária, é a medida da dor que não me dói. Me mata.

É cedo para morrer, ainda que somente os mortos saibam, efetivamen­te, o caminho do cadafalso. Resta muito da história para ser contada e, principalm­ente, vivida, mas sei que as flechas latinas darão conta do desatino neoliberal.

É hora de viver. É tempo de, sem esquecer, seguir adiante mais um bocadinho, suposto que não lembrar parece com não viver a plenitude do que somos, na incapacida­de histórica que estamos. É hora de colorir a vida em preto e branco e bancar uma história de empatia.

Não ouso falar de amor, que “o amor nesse tempo é muito cedo” e não há uma equação que sobreponha tempo e homem sobre a imensidão de suas histórias. Não podemos viver mais de narrativas. É da vida que vivemos e viver reclama um palco maior, afetado pela multiplici­dade de relações que a história demanda.

Bem sei que “não há palavra que alcance o mundo e ainda assim escrevo”, pois que senão morro. Morro a morte dos índios, a falência dos sentimento­s, a negação do convívio, a sagração de Iscariotes, a maldição de Bambino, o apito maldito de amarilla, a dor de Márcia e Renato, a solidão dos homens que não viram o dia amanhecer.

Morro, principalm­ente, o tempo passando sobre minhas histórias, vencendo no pó do caminho o significad­o de minha vida. Preciso reaprender a amar, que a dor da boiada passando trouxe um inferno aos meus lábios, impondo o amargor do ódio ao fermentado da última Brahma que tomei com meu pai.

É tempo de despertar e esmagar o fascismo!

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