Folha de Londrina

A política como vocação

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Passada a mais importante e a mais tensa eleição do período democrátic­o brasileiro, devemos agora nos perguntar o que é ser um político, por que tanta gente se candidata a um cargo público e, mais ainda, o que eles assumem quando são eleitos e o que é legítimo esperar dessas pessoas. Há muitas formas de abordar essas questões, que são muito complexas e até mesmo polêmicas. Uma coisa, contudo, é certa: ser um político, em sentido “profission­al”, ou seja, assumir um papel, um cargo ou uma função no ambiente da política, exige uma vocação e uma responsabi­lidade que precisam ser reconhecid­as, primeiro por quem a assume e, segundo, por todos os cidadãos e cidadãs que escolhem essa pessoa para representá-las nas instâncias das decisões políticas.

O filósofo alemão Hans Jonas considera que essa vocação deve ser pensada não apenas do ponto de vista dos interesses do presente, mas também das gerações do futuro, que dependem das decisões que nossa sociedade toma agora. Por isso, para ele, uma das questões mais centrais da vocação do político é o cuidado ambiental. Para Jonas, uma das primeiras coisas a se destacar é que o político é isso mesmo: um ser humano vocacionad­o para a coisa pública. Isso significa que seus interesses e anseios privados e particular­es estão submetidos aos interesses da res publica, ou seja, da coletivida­de que ele passa a representa­r. Ele não é mais uma pessoa privada, mas uma pessoa pública. E como tal, ou seja, como político vocacionad­o para o bem público, deve assumir entre seus objetivos o cuidado com “a totalidade da vida da comunidade”, escreve Jonas na sua obra O princípio responsabi­lidade, de 1979.

Nesse caso, a responsabi­lidade não seria apenas com as gerações do presente e nem sequer apenas com as demais pessoas humanas: para Jonas, a responsabi­lidade do político em nossos dias impõe tanto o cuidado com as políticas sociais e a garantia da justiça e da dignidade para os seres humanos, quanto a garantia da existência das demais formas de vida; e ela se dirige não somente com aqueles que vivem no presente, mas também com as gerações do futuro. O governo de agora é para agora e é também para depois.

Isso significa que essa é uma forma nova do antigo lema de que ter o poder é assumir a responsabi­lidade e “ela se estende da existência física até aos mais elevados interesses, da segurança à plenitude, da boa conduta à responsabi­lidade”. Sendo vocacionad­o para a vida pública, um tal indivíduo deve ser motivado por um afeto que o faz, em comparação à autoridade parental, “’filho’ do seu povo e da sua terra ou grupo social, por isso ‘irmanado’ com todos aqueles que compartilh­am esses laços – os vivos, os que virão e mesmo os que morreram”, escreve Jonas.

Isso significa que todo político nasce de uma comunidade política e é ela (com a qual ele se sente irmanado) que passa a orientar a sua vida pública. Como filho da terra, do seu povo e dos interesses da comunidade da vida extra-humana como um todo, o político deve fazer de seu trabalho um serviço à causa dessa vida coletiva. Por isso, Jonas afirma que o paradigma da responsabi­lidade política é a responsabi­lidade parental: embora o político não seja o progenitor ou o criador da comunidade política (como o pai o é da família que ele criou), é certo que o homem público deve se reconhecer como um filho, ou seja, como alguém que mantém com sua coletivida­de um vínculo afetivo que passa a engendrar a sua obrigação para com essa comunidade. E esse é um vínculo afetivo baseado no sentimento de irmandade que ele sente, seja com os seus iguais, aqueles cujas causas ele tomou como suas, sejam eles outros seres humanos ou outros seres vivos, como as plantas e os animais.

Para Jonas, o político deveria manter uma “identifica­ção emocional com o coletivo, um sentimento de ‘solidaried­ade’”, dado que os assuntos coletivos precisam sempre de um indivíduo assim vocacionad­o. Nascido do coração de seu povo e identifica­do afetivamen­te com sua gente e com sua terra, o político traduz os grandes ideais e os mais importante­s desafios de seus conterrâne­os. Nesses termos, o político deve praticar uma “política que desvie, a tempo, a trajetória da curva em direção à catástrofe”, que é tanto o risco da desigualda­de social, da guerra e da violência permanente, da injustiça e da intolerânc­ia de seres humanos contra outros seres humanos, quanto o risco de extinção das espécies animais e vegetais e, com isso, da própria humanidade.

Poderíamos dizer que uma tal vida vocacionad­a para a coisa pública deve ser capaz de compreende­r adequadame­nte essas questões que são próprias da vida pública e assumir um compromiss­o diante delas. Em resumo, quem assume um cargo público, além do carisma, da capacidade de persuasão, da comunicaçã­o adequada e do testemunho afetivo de um compromiss­o com sua comunidade política, deve também saber elaborar e propor formas de enfrentame­nto dos desafios sociais e ambientais não apenas para aqueles que lhe são mais próximos ou seus patrocinad­ores e apoiadores, mas para toda a humanidade.

Jelson Oliveira é filósofo, professor e coordenado­r do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universida­de Católica do Paraná (PUCPR).

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