Folha de Londrina

Sempre lavando louça

-

Haja o que houver, Hemingway / dê a louca no mundo, Lorca / lavarei a louça.

Escrevi isto aí no século passado, na Alemanha, visitando o amigo exilado Maurício Paredes Saraiva. Ele vivia num apê com uma alemã, e contou que lavava louça todo dia:

- No Brasil, nunca lavei louça, sempre vivendo só na casa dos pais, mas aqui, homem que não lava louça é olhado de viés...

Lavando louça ele revelou:

- Na Alemanha, homem também cozinha, limpa casa, lava roupa e põe pra secar no varal, pra depois guardar direitinho, aprendi tudo isso, um verdadeiro curso prático de convivênci­a doméstica. E assim confirmei o que sempre ouvi de minha mãe, que cuidar duma casa é que nem cuidar de um grande nenê, sempre tem o que fazer.

Lavar louça portanto era o de menos, ele concluía porém prenunciav­a:

- Mas também não vou tricotar! É, não viu quanto homem tricotando no metrô?

Sim, eu tinha visto homens a tricotar, sentados com novelos e agulhas nas mãos, tricotando suéteres ou cachecóis que lhes desciam pelas pernas. Maurício resumiu:

- Aqui o velho macho não tem vez, tem de ser, como dizem, um novo homem!

O “novo homem” era previsto como resultado e meta da totalitári­a utopia igualitári­a do comunismo, mas Maurício achava que já se via o novo homem ao menos nos costumes:

- As tarefas de cada um na casa são divididas. Ou os dois fazem tudo, ou um faz umas coisas e o outro outras. Então ela cuida das roupas, eu das louças.

Hoje Dalva e eu fazemos exatamente assim, mas naquele tempo eu tinha começado a lavar louças recentemen­te, vivendo sozinho em São Paulo, e contei a Maurício que não sofria com isso, ao contrário, gostava. Primeiro, porque lavando louça a gente tem nas mãos uma prova de que está vivo e teve o que comer, pode aproveitar pra agradecer. E é um momento só seu, quando você pode meditar, pensando em nada, ou pode pensar em afazenças, coisas a fazer sem tardança, como também pode lavando a louça alimentar lembranças. Além disso, quem faz com gosto não ganha desgosto.

Desde então lavo louça todo dia e peguei até mania de manter a pia sempre livre de louças sujas. Pode ser uma só xícara, lavo e pronto. Assim também controlo o mato do quintal, usando o ancestral arranquio: pintou mato, uso os joelhos pra agachar e mão pra arrancar, antes que solte sementes. Como faço isso sempre de passagem, nem vejo como trabalho, tornou-se um jeito de ser.

Assim, se me perguntare­m porque sou feliz, posso responder que é inclusive por não deixar mato sementear no quintal nem louça amontoar na pia. (Aí lembro de amigo que deixava a louça amontoar na pia pra lavar só no sábado, e um dia deu com um baita rato sobre os pratos, aí passou a lavar louça todo dia...)

Sinto até orgulho de ter louças nas mãos, esse símbolo da evolução humana pois, se não falam, todo dia deixam a entender que um dia, há apenas alguns milhares de anos, comíamos nas mãos! Então: ainda não estou tricotando, amigo, mas creio que vou continuar lavando a louça.

Domingos Pellegrini escreve na edição de fim de semana - d.pellegrini@sercomtel.com.br Os artigos publicados não refletem, necessaria­mente, a opinião da Folha de Londrina.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil