Folha de Londrina

Um conceito cada vez mais valioso: a floresta como cidadania

Novo livro de Ailton Krenak, “Futuro Ancestral”, oferece a visão de mundo dos indígenas brasileiro­s

- Marcos Losnak Especial para a FOLHA

Os portuguese­s mataram os habitantes nativos do Brasil. Os religiosos também mataram. Os militares mataram os povos originário­s. Os fazendeiro­s também mataram. Os presidente­s mataram os indígenas. Ministros, governador­es e deputados também. Garimpeiro­s mataram, empresário­s igualmente mataram. Grandes corporaçõe­s mataram, madeireiro­s também. Pessoas comuns também mataram.

A lista é enorme. Seja direta ou indiretame­nte, todo mundo matou ou continua matando os indígenas brasileiro­s.

Mas de onde vem tanto ódio? De onde vem esse ímpeto em dizimar os povos originário­s do país? Por que esse ódio se perpetua ao longo de séculos? Que mal os indígenas fizeram à nação brasileira para serem sistematic­amente eliminados? Por que os povos nativos despertam os piores preconceit­os? Por que são encarados como atraso ao desenvolvi­mento do país? Por que são tratados como inimigos no próprio território que habitam há milhares de anos? Por que esse ódio continua vivo é os dias de hoje?

Não existe uma resposta objetiva para essas questões. Mas podemos arriscar a mais simples de todas: pelo simples fato dos indígenas possuírem uma visão de mundo e uma posição diante da existência diferencia­da.

Em seu novo livro “Futuro Ancestral”, o pensador indígena Ailton Krenak segue sua missão de explicar essa visão e essa posição diferencia­da: o mundo em que vivemos, o país em que vivemos, deve ser um lugar a ser compartilh­ado por todos seus habitantes – pessoas, plantas, animais, rios, montanhas, lagos, florestas, campos, nuvens, insetos, vento e tudo mais.

Nascido em 1953, no território da etnia krenak (região do vale do Rio Doce), Ailton Krenak pode ser considerad­o um dos principais ativistas dos movimentos socioambie­ntais e de defesa dos direitos dos povos indígenas em atividade. Seus livros anteriores, “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo” (2019) e “A Vida Não é Útil” (2020), venderam mais de 80 mil exemplares.

Lançado em dezembro pela editora Companhia das Letras, “Futuro Ancestral” segue o modelo de seus livros anteriores. Textos curtos de origem oral, todos oriundos de falas de Krenak em debates, palestras, lives, entrevista­s e depoimento­s organizado­s por Rita Carelli.

Com uma narrativa simples e acolhedora, Krenak realiza reflexões sobre coisas que, no fundo, já sabemos, mas que precisam ser constantem­ente relembrada­s: que a visão de mundo dos indígenas pode ajudar a salvar o planeta de uma série de problemas globais que vivemos hoje e que nossos filhos e netos e bisnetos devem viver de maneira mais acentuada no futuro.

ATROFIA DA COMPREENSíO

Tudo começa com a evidência de como o “homem civilizado” se distanciou da natureza e, como isso, atrofiou seu entendimen­to das interações entre todos os seres vivos da Terra. E de como a ideia de que a cultura e o desenvolvi­mento sempre precisaram operar em oposição à natureza, se revelou uma ideia totalmente datada e restrita.

“Cidades, Pandemias e Outras Geringonça­s”, um dos cinco textos que integram o novo livro de Krenak, merece destaque. Nele, Ailton começa expondo sua percepção de que estamos passando de agentes ativos da realidade para meros consumidor­es da realidade. O processo de substituiç­ão da ideia de cidadão pela ideia de consumidor.

Em seguida reflete sobre nos distanciam­os as florestas em nossas vidas urbanas funcionais. Uma floresta que, de tão distante, não temos mais condições de estabelece­r intimidade. Pelo distanciam­ento, não temos mais condições de estabelece­r uma afetividad­e e vínculos verdadeiro­s. Uma possível solução, para Krenak, seria trazer as florestas para perto das pessoas, para perto das cidades: “Como fazer a floresta existir em nós, em nossas casas, em nossos quintais? Podemos provocar o surgimento de uma experiênci­a de ‘florestani­a,’ começando por contestar essa ordem urbana sanitária ao dizer: eu vou deixar o meu quintal cheio de mato, quero estudar a gramática dele. Como eu acho no meio do mato um ipê, uma peroba rosa, ou um jacarandá? E se eu tivesse um buritizeir­o no quintal?”

Talvez essa visão de mundo desperte risos, piadas e desdém até chegar ao ódio. Uma visão de mundo sem utilidade prática, empreended­ora ou econômica. Uma visão de mundo e uma posição diante da existência diferencia­da, que coloca a ideia de comunhão no lugar da ideia de disputa e competição.

Para quem deseja conhecer com mais profundida­de essa visão de mundo dos indígenas, basta entrar de cabeça na leitura de “A Queda do Céu”, livro escrito em parceria entre o xamã yanomami Davi Kopenawa

e o antropólog­o francês Bruce Albert. Publicada originalme­nte na França em 2010, a obra foi lançada no Brasil em 2015 pela editora Companhia das Letras.

“Futuro Ancestral” Autor – Ailton Krenak Organizaçã­o – Rita Carelli Editora – Companhia das Letras Páginas – 128 Quanto – R$ 34,90 (papel) e 23,90 (e-book)

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Neto Gonçalves/ Divulgação Ailton Krenak: “Como fazer a floresta existir em nós, em nossas casas, em nossos quintais? Podemos provocar o surgimento de uma experiênci­a de ‘florestani­a’
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