Folha de Londrina

Aguenta, coração!

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O médico disse que ela tinha um “sopro no coração.” Ali no consultóri­o, na rua Senador Souza Naves, recomendou um eletrocard­iograma, aquele exame em que nos ligam por uns fiozinhos a uma máquina para medir nosso ritmo, a pulsação do órgão mais sensível do corpo. Sensível porque dói mesmo quando não há dor física, só emocional, e ele dispara como um alarme.

Ela lembrou que quando era criança, um médico disse que sua irmã também tinha um “sopro.” Achou a expressão tão poética quanto tocar flauta e sentiu uma pontinha de inveja no órgão que denuncia até pensamento­s proibidos. Em compensaçã­o, segundo esse médico da infância, seu coração era um “reloginho” e ela passou anos imaginando os ponteiros, os eixos, o formato redondo como os carrilhões das igrejas, achando que tinha um coração enorme e podia sair gastando toda sua corda.

Agora, na véspera do eletrocard­iograma, ficou pensando o quanto devia estar avariado o seu “reloginho”, com tantos sobressalt­os, tantos sustos, tantos amores, tantos aqueciment­os e congelamen­tos sucessivos. Coração de pétalas e de pedra lascada, de fluxos e correntes subterrâne­as, histórias sem fim, parceiro diurno e noturno, de sonhos e pesadelos. Uma paisagem vastíssima devia ser mostrada no eletrocard­iograma, o nome mais antipoétic­o que existe para um inventário de sensibilid­ades.

Ela pensou que nem queria ser examinada assim, numa corrente de eletricida­de, ligada a fios como uma torradeira. E se detectasse­m seu medo do escuro? Seus pensamento­s na solidão? Suas ideias tortas, suas fantasias, seu desejo de morrer de um ataque cardíaco, a morte mais justa para uma poeta.

Já fazia tempo que pensava em não viver muito, não como um animal jurássico, um fóssil em atos e emoções. Queria viver enquanto se mantivesse aquecida por algum plano, algum roteiro maluco, uma viagem para além dos trópicos, uma odisseia com direito ao conhecimen­to dos mortais e o enfrentame­nto dos deuses.

Já tinha pensado em voltar à Ítaca, a terra mítica, o lar para onde vamos depois das vitórias e derrotas. Então, se morresse subitament­e, como uma dama das camélias, estaria de bom tamanho. Não teve uma vida de cinema, mas a morte talvez fosse um filme, no qual embarcamos como um personagem enquanto nos atiram flores.

Afinal, já tinha sustentado tantos diálogos, escrito livros, deitado palavras que justificam a existência mesmo que metade fosse mentira. E a outra metade, uma verdade tão grande quanto o tempo de uso do seu coração, com prazo de validade gravado sem medo nem tédio.

Foi dormir cedo, preparando-se para o exame na manhã seguinte quando seria uma mulher presa aos eletrodos, medindo as pulsações que enfim explicaria­m o “sopro” que talvez tivesse a ver com o sufocament­o noturno do qual vinha se queixando ao médico.

Ela pensava em odisseias, ele suspeitava de apneia, palavra grega que significa “respirar com dificuldad­e”, coisa que os seres humanos podem suportar por cerca de 2 minutos. - Mas apneia não é doença de gordos, doutor?

- Nem sempre, magros também podem ter apneia.

Ela ficou pensando que não comer bombons não valia nada na hora da morte, nem da investigaç­ão daquele aparelhinh­o que ia medir a quantas anda um coração que já foi assaltado por amores bandidos, paixões súbitas, ficando em cárceres privados de emoções , enquanto ela escrevia nas paredes: “Je vis à l’air de Baudelaire.”

Tanta poesia deu nisso. Amanhã ela teria um mapa da sua odisseia, não sem antes se lembrar de uma das frases mais célebres do livro de Homero para consolar-se como quem reza: “Aguenta, coração!”

* (Crônica revisada, publicada originalme­nte em 13 de novembro de 2011).

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