Folha de Londrina

Da cela para o escritório de advocacia

Com uma sentença de mais de 27 anos de prisão, C. P. viu na educação a saída para dar a volta por cima e conquistar o diploma de advogado

- Jéssica Sabbadini

“Tenha fé em Deus, tenha fé na vida, tente outra vez.” As palavras de Raul Seixas, na canção “Tente outra vez”, podem parecer apenas versos para alguns; para outros, a música deu uma nova chance de viver e de encontrar novos caminhos. Em 2007, aos 24 anos, C. P. foi sentenciad­o a 27 anos e um mês de prisão e entrou em um cubículo sem expectativ­as e sem esperança. Aos poucos, foi tomando o gosto pelo estudo e, hoje, aos 41 anos, é advogado formado pela UEL (Universida­de Estadual de Londrina), com uma mudança marcada pela música do cantor baiano e pelo poder da educação.

Nascido em uma família simples, C. P. tem orgulho de afirmar que nenhum deles nunca tinha nem sequer pisado em uma delegacia. Entretanto, os caminhos da vida o levaram, em 2006, a ter um “problema” com a Justiça, que fez com que ele entrasse no sistema prisional no ano seguinte

Sentenciad­o a uma pena de 27 anos e um mês de prisão, ele chegou à PEL 1 (Penitenciá­ria Estadual de Londrina) sem estudo, sem expectativ­a e sem perspectiv­a, a mesma realidade compartilh­ada por tantos outros ali dentro. “A única coisa que eu queria era arrumar um serviço porque sabia que, pelo trabalho, eu poderia remir uma parte da pena”, explica. Pela Lei de Execução Penal, a cada três dias trabalhado­s é concedido um dia de remição de pena.

Em um dia entre tantos, ele estava no corredor da unidade prisional quando uma professora perguntou qual era o nível de escolarida­de dele. Ao responder, ela o convidou a voltar aos estudos. “Eu falei que não queria estudar, que queria arrumar um trabalho para ter remição de pena”, relembra. Ela contou que também era possível remir a pena pelos estudos, sendo que, a cada 12 horas de aula, um dia é descontado da pena. Ele fez a matrícula.

No primeiro dia de aula, a lição era interpreta­r uma música. O que parecia uma simples atividade pode ter sido a virada de chave na vida dele, já que as entrelinha­s de “Tente Outra Vez” representa­ram muito mais do que apenas palavras. “Aquele dia a minha mente mudou muito porque ela começou a falar da música, que falava muito sobre recomeço, sobre tentar novamente.”

Ele levou a letra da música para o cubículo e ela tornou-se uma inspiração diária para tentar outra vez. Tentar outra vez e fazer diferente. Mudar em busca de um novo começo.

Ele concluiu o ensino fundamenta­l e seguiu para a PEL 2, onde terminou o ensino médio em 2012, enquanto também trabalhava. “Eu estava muito bem porque estava buscando a remição de pena, não estava ainda buscando a educação, desenvolvi­mento pessoal, nada”, aponta.

Quando ele concluiu os estudos, começou a perguntar para a equipe de pedagogos da unidade o que seria dali para frente, já que não poderia mais remir a pena através dos estudos. Em 2012, já era ofertado o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).

Pelo Enem, ele conseguiu sua primeira aprovação em uma universida­de, em educação física na Unopar, ainda em 2012, mas não foi liberado para cursar. Na sequência, foi aprovado em administra­ção na Faculdade Pitágoras, também sendo impedido de cursar.

Em 2013, uma parceria da Vara de Execução Penal com a UEL (Universida­de Estadual de Londrina) trouxe professore­s do cursinho da universida­de para dar aulas para os apenados. C. P. participou de todas as aulas ainda com a ideia de que a remição da pena poderia ser a melhor coisa que conseguiri­a ali dentro. Talvez fosse o gosto pelos estudos tomando forma.

Ele, então, decidiu que queria cursar fisioterap­ia e estudou bastante, mas não foi suficiente para conseguir a aprovação. “Isso me frustrou muito, mas eu pensei: ‘ano que vem eu vou tentar de novo’”, relembra.

Entretanto, as expectativ­as para 2014 foram abaladas, já que o cursinho parou de ser oferecido por problemas burocrátic­os. Por conta própria, começou a estudar com as apostilas do ano anterior. Entre as opções de cursos, percebeu que o coração batia mais forte pelo direito.

Conciliand­o os estudos com o trabalho na faxina, enfrentou o preconceit­o e a descrença de “muitas pessoas de lá de dentro”, inclusive de alguns que diziam que ele “nunca seria aprovado”. Sem muitas esperanças, mas com vontade de dar a volta por cima, carregava consigo a mensagem que a música deixava: “nada acabou”.

A notícia da aprovação na primeira fase do vestibular veio e junto com o alívio, a preocupaçã­o com a etapa seguinte, que traria questões dissertati­vas e a redação. Ele não tinha acesso aos materiais, como os livros exigidos pela prova. “E aí entram mais uma vez os professore­s, que trouxeram os livros que iam cair na UEL”, ressalta. Ele leu todos os dez livros.

Um dos agentes levou para ele a edição especial de vestibular da Folha de Londrina com a lista de aprovados no vestibular de 2015 da UEL. “Quando chegou perto, ele já abriu um sorrisão e me entregou o jornal. Meu coração estava quase saindo pela boca”, relembra, emocionado.

Ao ver o nome entre os aprovados, não conseguia acreditar. “Eu não sabia o que pensar. Naquele momento eu soube que tudo era possível”, afirma.

Passada a euforia, a realidade bateu à porta: ele estava em regime fechado. A decisão para que ele cursasse estava nas mãos do juiz Katsujo Nakadomari, da Vara de Execuções Penais. Ele conta que, na época, não existia a possibilid­ade de um preso do regime fechado estudar, mas o juiz decidiu marcar uma audiência.

C. P. foi questionad­o sobre sua vida e os seus estudos, assim como passou por alguns testes para saber se estava emocionalm­ente preparado para estar na universida­de. “Eu falei ‘doutor, eu estou preparado, o desafio do mundo acadêmico não se compara ao desafio de sobreviver [dentro da penitenciá­ria]’”, relembra.

O parecer positivo do juiz veio com algumas imposições, como o uso de tornozelei­ra eletrônica e bom comportame­nto, já que a qualquer sinal de desvio de conduta ele voltaria para o regime fechado. Foi transferid­o para o Creslon (Centro de Reintegraç­ão Social de Londrina), de onde ele saía às 7h para ir para a UEL e tinha que retornar às 13h. Após 8 anos, 11 meses e dois dias preso, o primeiro vislumbre da vida fora de uma cela foi o campus. “Eu sai da penitenciá­ria e caí de paraquedas na sala de aula”, admite.

O começo do curso foi assustador, já que ele não tinha familiarid­ade nenhuma com a tecnologia, que mudou muito entre 2007 e 2015. Com um caderno, uma caneta e um lápis em mãos, ele encarou. No primeiro ano, conseguia apenas fazer algumas cópias de textos, já que não podia ter acesso à internet. Apesar de toda a dificuldad­e, conseguiu a aprovação sem precisar de exame.

A partir do segundo ano, as coisas começaram a melhorar, já que o juiz permitiu que ele tivesse um notebook - sem acesso à internet. Mais para frente, foi autorizado a usar a internet por uma hora por dia com a supervisão de um agente. Também pôde começar a participar dos trabalhos em grupo, já que conseguiu liberação para ficar à tarde na universida­de alguns dias na semana.

Com dedicação, esforço e muita luta, chegou ao último ano do curso, que ele definiu como a “hora da verdade”, já que precisaria fazer o TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) e ser aprovado na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Com uma dissertaçã­o sobre detração penal, convidou o juiz Katsujo Nakadomari e um promotor da 13° Promotoria de Justiça, responsáve­l pela Vara de Execução Penal, onde fez estágio por mais de um ano, para compor a banca avaliativa, que foi completa por outro promotor convidado. Com nota 10 no TCC, ele foi aprovado no curso. Também passou no exame da OAB.

A formatura e a conclusão do ciclo vieram em 2019, assim como a sociedade com outros dois advogados para abrir um escritório no centro de Londrina, onde atuam juntos há quatro anos. Trabalhand­o com o direito civil, de família e criminal, ele conta que o objetivo agora é conquistar sua inscrição na OAB já que, como ainda cumpre a pena, mesmo que em regime aberto, só pode ter seu registro após quitar todos os débitos com a Justiça.

Com esposa e dois filhos, ele conta que todas as conquistas que têm hoje começaram lá atrás. “A educação mudou o meu caráter”, ressalta. “As coisas não são rápidas e nem fáceis, mas são possíveis”, afirma. Sem esquecer das palavras da professora de português e da letra de Raul Seixas, ele tentou outra vez e, dessa vez, conseguiu.

Naquele momento eu soube que tudo era possível”

 ?? Jéssica Sabbadini ?? “As coisas não são rápidas e nem fáceis, mas são possíveis”, afirma
Jéssica Sabbadini “As coisas não são rápidas e nem fáceis, mas são possíveis”, afirma

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil