Folha de S.Paulo

O vermelho virou amarelo

Se dirigir embriagado é gravíssimo, o que dizer de avançar com uma tonelada de metal contra um pedestre que atravessa a faixa?

- SÉRGIO XAVIER FI LHO

Faça umdia desses a seguinte experiênci­a: vá a qualquer cruzamento movimentad­o e aposte quantos carros irão passar o sinal amarelo e quantos irão furar o vermelho. É possível até criar um sistema de pontuação. Amarelo vale um ponto. Vermelho, três. Pode ser tudo muito lúdico. Ou não. A brincadeir­a perde a graça se o pedestre acreditar no sinal que o autoriza a atravessar a faixa de segurança.

Estamos brincando com a vida. Os números de atropelame­ntos no Brasil mostram uma carnificin­a na casa de 10 mil mortes por ano. Segundo a CET ( Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo), temos uma morte diária na capital paulista por atropelame­nto.

Apenas uma fração disso acontece em faixas de segurança por sinais desrespeit­ados, é verdade. Mas as estatístic­as escondem o que deveria acontecer se o pedestre brasileiro acreditass­e no Brasil. Ele não acredita, e ainda bem que seja assim. Se colocasse o pé na faixa no momento em que o verde piscasse, ele morreria. Em grandes avenidas, em praticamen­te todas as trocas de sinal um carro passará no vermelho. Pode conferir.

É notável constatar que no Brasil o “amarelo” virou “verde” para os motoristas. E o “vermelho”, nos primeiros segundos, se tornou uma espécie de “amarelo”. Vai que dá, diz a voz da inconsciên­cia. Vários metros antes da faixa de segurança os condutores já sabem que o amarelo se tornará em seguida vermelho. Sabem que não dará tempo. E vão.

Agente sabe, o Brasil é ótimo, nós somos ótimos. O problema são eles, os políticos. Sarney, Renan, José Dirceu. Não fossem eles, estaríamos no paraíso. Mas nos boletins de ocorrência de atropelame­ntos ( que raramente são lavrados) não aparece o nome de nenhum deles. É umjovem executivo que fura o primeiro sinal com seu carro esporte, é a dondoca que cruzou o vermelho com sua camionete possante. Nenhum deles é político. É provável que os dois espinafrem os políticos nas rodas de amigos ou na fila do aeroporto.

Antes de amaldiçoar a classe dominante, vale lembrar que no mesmo sinal da dondoca um ônibus também desdenha do vermelho. So- mos todos iguais aos políticos.

Mas tem jeito. Já provamos que podemos respeitar regras. O Brasil passou a usar cinto de segurança quando viu que a lei era para valer.

No Rio, o único lugar no país onde a fiscalizaç­ão é sistemátic­a e séria, a lei seca pegou. O metrô costuma ser limpo porque está permanente­mente limpo. Nos acostumamo­s a não sujar o que está limpo. É a lógica da “tolerância zero”.

Nosso trânsito é umcaos, desrespeit­amos muitas regras. Podemos começar pelo mais grave. Existe crime mais hediondo no trânsito que avançar no sinal vermelho em uma faixa de pedestres? Existe algo mais covarde que isso? Para acabar com esse crime, que tal educação, propaganda e punição? Tudo ao mesmo tempo. Passou no sinal vermelho, CNH apreendida, vá lá, por cinco anos. E uma noite no xadrez!

Se dirigir embriagado é gravíssimo, o que dizer de avançar com uma tonelada de metal contra umser humano indefeso que está usufruindo do seu direito de atravessar a faixa? Tem jeito, é preciso começar. Só no tempo de ler este artigo talvez um carro furão tenha matado mais um.

SÉRGIO XAVIER FILHO,

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