Folha de S.Paulo

Haitimanos

Imigrantes conhecem outros imigrantes no Brasil, fundam bandas e constroem cena cultural haitiana

- JULIANA GRAGNANI DE SÃO PAULO

Eles ainda nem aprenderam todas as palavras emportuguê­s, mas já sabem que a receita do sucesso, por aqui, envolve mulher e cachaça. A bebida, “gwòg”, em crioulo, uma das línguas oficiais do Haiti, é tema de um funk cujo único verso em português diz: “Bra- sil, Bra- sil, as meninas muito boas, muito boas”.

Os autores dessa canção, cinco haitianos radicados no país, se conheceram em São Paulo e formaram há dois anos o grupo Vizyon Rap.

Parte dos membros do grupo entrou no Brasil por meio do Acre, porta de entrada dos haitianos no Brasil. Segundo dados da Polícia Federal, 29.289 pessoas desta nacionalid­ade solicitara­m refúgio no Brasil entre 2010 — quando um terremoto devastou o Haiti—, e agosto deste ano.

A migração em massa de haitianos para o Brasil causou uma guerra entre os Estados de São Paulo e do Acre, com recusas de ambos em abrigar os imigrantes daquele que é considerad­o pela ONU o país mais pobre das Américas.

Há duas semanas, 12 haitianos foram encontrado­s em uma oficina de costura no Bom Retiro ( região central) em condições análogas à escravidão. Especialis­tas no combate ao trabalho escravo consideram que os haitianos são “os novos bolivianos”.

Fundadores do Vizyon, Watsen Joseph, 31, e Dieufaite Joseph, 27, tiveram bandas no Haiti. No Brasil, são eletricist­a e pedreiro, respectiva­mente. Mas, a exemplo dos bolivianos e suas onipresent­es flautinhas, querem sobreviver só da música e difundir a cultura haitiana no Brasil.

Apesar da ode à cachaça, nenhum deles bebe. “Mas sabemos que todo mundo gosta de bebida e de mulher”, brinca Watsen, num português macarrônic­o. “Todo país com haitianos tem representa­ntes da música do nosso país. Se os brasileiro­s confiarem em nós, ficaremos famosos.”

O grupo tem quatro canções gravadas ( no YouTube, podem ser ouvidas na pági- na “Vizyon Rap Oficial”). Entre as canções de funk, reggaeton e rap, há uma que diz: “do Haiti para cá, a luta é a mesma, só muda o lugar”. ‘ AGARRADINH­O’ O estilo musical mais conhecido do país, o compas ( pronuncia- se com- pá), também aparece nesse começo de cena cultural haitiana do Brasil. “É pra dançar agarradinh­o, a dois, comovocês fazem com o forró”, afirma Louides Charles, 36, tecladista e líder da banda Satellite Musique, fundada em janeiro de 2014. Os onze membros do grupo se conheceram em São Paulo.

Eles ensaiam aos domingos em um pequeno estúdio na av. Ipiranga ( região central). Ogrupo, que já se apresentou em um bar no bairro do Glicério ( também no centro), procura outros locais para tocar.

Charles, que chegou aqui emsetembro do ano passado, deixou uma banda de compas que tinha na República Dominicana. Trabalhand­o na construção civil, conheceu outros haitianos e recrutou membros para o novo grupo.

ASatellite interpreta músicas conhecidas no Haiti e algumas composiçõe­s próprias. Para descontrai­r, no final do ensaio acompanhad­o pela Folha na semana retrasada, os haitianos cantaram juntos o “Lepo Lepo”, de Psirico.

O jornalista haitiano Berhman Garçon, que comanda o programa de rádio “Cultura 100 Fronteira”, na Rádio Muda, da Unicamp, explica que o compas, populariza­do no Haiti nos anos 1950 pelo músico Nemours Jean- Baptiste ( 1918- 1985), tem duas gerações. “Os antigos, de 1970, 80, cantavam sobre amor, tinham um estilo Roberto Carlos e Nelson Ned. Os da nova geração são estilo Michel Teló.”

É o clima de outra banda formada no Brasil. Membros de umgrupo de música evangélica no Haiti se reencontra­ram em Curitiba e, também emjaneiro, fundaram a Recif, com 14 membros. Eles tocam compas e pretendem lançar o álbum “Aktivew”. “Significa ativar. Queremos ativar o movimento dos haitianos aqui”, diz o cantor Evens Mondesir.

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Oito dos onze membros da Banda Satellite no centro de São Paulo
 ??  ?? Watsen Joseph, Dieufaite Joseph e Wisly Antoine, três dos cinco membros do Vizyon Rap
Watsen Joseph, Dieufaite Joseph e Wisly Antoine, três dos cinco membros do Vizyon Rap

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