Folha de S.Paulo

MINHA VIDA DARIA UMA TRILOGIA

Musa do cinema marginal, a atriz Maria Gladys fala da falta de grana nas entressafr­as na TV, de sexo e drogas e da neta estrela internacio­nal

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A casa de tijolo aparente, varanda com vista para as montanhas e guardada por dois cães vira- latas ( Cachorra e Shazan) são o cenário e as companhias mais constantes de Maria Gladys.

A atriz recebeu a repórter Eliane Trindade no sítio em que vive em Santa Rita do Jacutinga ( MG), a 170 kmdoRio. Aos 74 anos, ela faz a ponte rodoviária entre as duas cidade, de ônibus, ao começar a gravar “Sexo & as Negas”, seriado de Miguel Falabella, que estreia na Globo dia 16.

De camiseta do Nirvana, a musa do “cinema marginal” dos anos 1960/ 1970 mostra seu refúgio. “Não tinha dinheiro para pagar o apartament­o que morei por 18 anos na avenida Atlântica, em Copacabana.” Para se livrar do aluguel de R$ 3.000, arrendou o sítio, nos arredores de onde mora o filho. “Os lugares que eu podia pagar no Rio eram ridículos de caros. E horríveis.” Encontrou uma vida mais barata e a quietude da localidade de 5.000 habitantes.

O smoradores se lembram de Gladys como a doméstica Lucimar de “Vale Tudo” ( 1988), novela de Gilberto Braga. Poucos sabem que atuou em filmes importante­s de Neville D’Almeida (“Matou a Família e Foi ao Cinema”, 1969), Júlio Bressane (“O Anjo Nasceu”, 1969) e Rogério Sganzerla (“SemEssa Aranha”, 1970). “Trabalhei com todos os gênios da minha geração.”

Dá uma baforada em um cigarro caseiro. E viaja citando outras obras em que atuou, como “Os Fuzis” ( 1964), de Ruy Guerra, marco do cinema novo. Conta, aos risos, que até hoje leva a fama indevida de ter ganho um Urso de Prata no Festival de Berlim: “Acham que ganhei o prêmio como atriz. E não consigo desmentir: ‘ Não fui eu, foi o diretor’”.

Diverte- se também com outra lenda da carreira de cinco décadas: ter sido dirigida por Glauber Rocha. “Ficou a fama por eu participar da dublagem de ‘ Deus e o Diabo na Terra do Sol’.”

Em sua extensa filmografi­a consta “Todas as Mulheres do Mundo” ( 1966), de Domingos de Oliveira. Sem falsa modéstia, afirma: “Meu currículo é uma obra- prima”. Domingos transformo­u em peça o fato de Gladys fazer de sua casa central telefônica. “Eu não tinha telefone e usava o dele. Ouvia os papos e um dia me mandou sentar e contar minhas histórias.” Nascia “Rita Formiga”, já encenada por Zezé Polessa.

Sua vida é mais que uma peça ou umfilme. “Daria uma trilogia.” Nascidaem Cachambi, subúrbio do Rio, teve paralisia infantil aos três anos. “Sou menina pobre mimada. Usei botinhas.” Ficou com alguma sequela na perna esquerda. “Não tenho força nela e mancava quando corria.”

Nada que a impedisse de virar bailarina em um programade TV comandado por Carlos Imperial. Conheceu a turmada jovem guarda e teve um namorico com Roberto Carlos. “Não venha me falar dessa gente. Parece que quero aparecer. Não se pode falar dessa pessoa [ Roberto]. Ele não fala de mim, não falo dele.”

Aos 16 anos, Gladys teve o primeiro filho. Separou- se um ano depois de Edson, pai de Glayson. “Eu inventei o nome. Sou uma poeta”, brinca, sobre a junção do nome de ambos. “Quando mudei pra zona sul, minhas amigas intelectua­is falavam: ‘ O nome do filho da Gladys é de morrer de rir’.” O filho diz gostar.

A mãe de Glayson deixou o garoto com os avós no subúrbio e começou a fazer teatro e história. Em1959, estreou como figurante em “O Mambembe”, estrelada por Fernanda Montenegro. No mesmo ano, apareceu com os seios à mostra em “O Chão dos Penitentes”, primeiro nu no teatro brasileiro. “Nunca tive pudor em ficar nua.”

Abre- se, então, o segundo capítulo de sua trilogia. Entre 1971 e 1973, Gladys se uniu aos amigos que escaparam para Londres depois do golpe militar. “Nomeio de toda alegria e loucura, tinha a luta contra aditadura.” Vira hippie. “Nossa geração era do balacobaco. Tomei muito ácido. Se não fosse o LSD não tinha descoberto a luz do outono. Passeava no parque e via as árvores chorando. Todo mundo viajava. Era um contexto cultural.”

Confessa que sentia medo. “Sou sobreviven­te. Tive ‘ bad trips’ terríveis. Uma amiga muito próxima pirou e nunca mais voltou.” Foi nesse caldeirão que engravidou de Rachel ( é mãe também de Maria Teresa, filha do documentar­ista Oscar Maron Filho). O roteiro é “melhor do que qualquer novela”, avisa, diante da pergunta de quem é o pai de sua filha do meio, hoje com 40 anos. “É Lee Jaffe, um músico e cineasta americano, mas até cinco anos atrás achava que era um inglês chamado John.”

Sem exames de paternidad­e na época, recorreu às contas imprecisas de uma amiga para apostar no inglês. Mas a dúvida persistiu. “Eu via tre--

jeitos do Lee na Rachel e pensava: ‘ Será que é mesmo do inglês?’.” Chegou a sugerir que se fizesse um DNA. O acaso a fez reencontra­r a paixão da juventude. “Estava em um bar em Copa, quando Neville me chama: ‘ Adivinha com quem estou falando?’.”

Era Lee. Trocaram e- mails e fotos dos respectivo­s filhos. Rachel era a cara de Max Marley, um dosherdeir­os do americano, batizado emhomenage­m a Bob Marley, com quem trabalhou. “Na hora, ele quis fazer o DNA e ligou para Rachel pedindo uma amostra de saliva.” Confirmada a paternidad­e, ela foi aos EUA conhecer o pai. Decidiram não contar nada ao inglês, que nunca a registrara.

A seguir cenas do terceiro capítulo da trilogia, com participaç­ão indireta de Lars von Trier. O cineasta dinamarquê­s revelou Mia Goth, atriz de “Nifomaníac­a: Volume 2”, filha de Rachel e neta de Gladys. A modelo de 19 anos nasceu em Londres, para onde sua mãe se mudou para ficar perto do pai que não era pai. “Faz um ano e meio que John viu uma reportagem da Mia falando do avô americano. O bicho pegou. Foi na agência dela dizer que era mentira e ia processá- la”, relata Gladys.

Ufa! É hora de dar uma parada para um café. Apesar do orgulho de ver a neta fazendo sucesso, a avó confessa na cozinha que não viu “Ninfomanía­ca”. “Eu tava de mal com a Mia.” Por quê? “Prefiro não comentar.” Ri e conta que a neta fala português com sotaque e morou no Rio com ela por dois anos.

“A menina está seguindo os passos da avó. Meus diretores são todos desse tipo de cinema autoral”, divaga. Em seguida, decreta: “Chega de Mia”. A neta hoje mora em Los Angeles com o namorado, o ator Shia LaBeouf, com quem contraceno­u no filme.

A interrupçã­o do papo ao citar o astro de Hollywood pode ter a ver com o Réveillon, quando LaBeouf veio ao Rio conhecer a família de Mia. A chegada de 2014 foi brindada em um apartament­o em Copa alugado pelo ator milionário. Com champanhe Cristal. “Uma garrafa só. Uma afronta, como diz um amigo meu”, debocha. Ummomento de glamour em meio a dificuldad­es financeira­s da atriz. “Ele ficou só três dias e voltou correndo”, diz Gladys.

Gladys batalha para se aposentar. Os amigos chegaram a propor uma vaquinha no Facebook para pagar o que ela deve ao INSS. “Minha vida sempre foi difícil de grana. Tenho contrato por obra. Aí a vida é boa, pago minhas dívidas. Quando estou quitando tudo, acaba o contrato e recomeça a luta.” Conta com amigos, como Miguel Falabella. “Tenho orgulho de ter feito todas as novelas dele. É um luxo. Sou muito grata.” Gladys volta ao ar no seriado no papel de Fumaça, anotadora de jogo do bicho trambiquei­ra.

Continua a atuar no cinema. “Faço filmes com novos diretores. Fiz ‘ Febre do Rato’ [ Cláudio Assis], entende? Não fiz ‘ Tropa de Elite’ [ José Padilha]. Nada contra, mas meus trabalhos nunca são ‘ blockbuste­rs’ [ líderes de bilheteria]. Não dá dinheiro. Dá prestígio. Sou essa atriz.”

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Zô Guimarães/ Folhapress A atriz no sítio que alugou em Santa Rita do Jacutinga ( MG)
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Antonio Guerreiro Maria Gladys nua nos anos 1970 e Mia Goth, sua neta, em “Ninfomanía­ca: Volume 2”
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Em “Sexo & as Negas”, a atriz fará o papel de Fumaça
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Divulgação

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