Fim de uma era
O primeiro turno da eleição na Argentina teve um sabor amargo para a presidente Cristina Kirchner. Seu candidato à sucessão, o peronista Daniel Scioli (Frente para a Vitória, de centro-esquerda), obteve 36,9% dos votos e ficou pouco à frente do oposicionista Mauricio Macri (Mudemos, de centro-direita), que alcançou 34,3%.
O resultado causou certa surpresa, pois algumas pesquisas indicavam até dez pontos de vantagem em favor de Scioli. Ao que tudo indica, Macri contou na última hora com o reforço dos indecisos, já que o terceiro colocado, o peronista dissidente Sergio Massa (Unidos por uma Nova Argentina), chegou ao patamar antecipado pelos institutos de opinião (21,3%).
Com isso, o país conhecerá um inédito segundo turno (no dia 22 de novembro). Isolado, esse fato já seria sinal suficiente de que o governo perdeu boa parte de sua capacidade de mobilização.
Houve mais, contudo. A coalizão de Cristina encolheu na Câmara dos Deputados, passando de 51% para 42% das cadeiras. O chefe de gabinete da própria presidente, Aníbal Fernández, perdeu a disputa pela Província de Buenos Aires para uma aliada de Macri.
Não que o kirchnerismo tenha sido varrido no último domingo (25). Os governistas continuam sendo a principal força do Congresso e venceram na maioria das localidades. É evidente, entretanto, que a hegemonia do consórcio hoje no poder se aproxima de seu fim.
Impedida por lei de concorrer a um novo mandato, Cristina só apoiou Scioli —moderado demais para seu gosto— porque seu próprio grupo não tinha nenhum nome viável. A presidente não pôde senão escolher um outro expoente dentro do peronismo, mesmo que pertencente a uma corrente rival.
Divisões dessa natureza não são recentes. O peronismo não é um bloco coeso, mas uma ideologia nacionalista, de forte apelo nos estratos mais pobres, compartilhada por grupos que vão do fascismo à extrema-esquerda.
Apesar das divergências com a presidente, Scioli não deixa de ser identificado com o peronismo no poder. Em condições normais, tal circunstância bastaria para o sucesso de um candidato na Argentina.
Não hoje, todavia. A economia do país está estagnada (o PIB cresceu 0,5% em 2014, segundo o governo) e a inflação oficial atingiu 15% ao ano (o índice real talvez se aproxime de 25%). No mercado paralelo, US$ 1 vale quase 16 pesos.
O kirchnerismo vive um pesadelo: se Daniel Scioli vencer, a vitória será dele —e talvez a despeito do governo. Se perder, por outro lado, sua derrota decerto será atribuída a Cristina Kirchner.