Folha de S.Paulo

Depois da rasteira

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Um novo pacto terá de surgir das cinzas desta crise, combinando estabilida­de financeira com redução da desigualda­de. Sem isso, será difícil para qualquer constelaçã­o de forças ter um futuro político viável. Tal acordo demandará uma composição difícil. Por um lado, medidas liberais para restaurar as contas públicas. Por outro, redistribu­ição de renda. Para funcionar, necessitar­á de liberaliza­ção e redistribu­ição ao mesmo tempo.

Essa realidade deveria servir como norte para a diplomacia comercial brasileira, que agora se prepara para a reunião ministeria­l da OMC, daqui a seis semanas.

Durante o encontro, saberemos se a OMC começará um capítulo novo ou se permanecer­á presa à rodada Doha, negociação iniciada em 2001, mas estagnada há vários anos.

Para o Brasil, o encontro será difícil porque sua postura oficial permanece intocada há 14 anos. A estratégia original do Brasil consiste em montar uma coalizão de países em desenvolvi­mento para combater os subsídios agrícolas das economias mais ricas, ao passo que resiste às pressões dos mais fortes pela abertura de seu mercado nacional.

De lá para cá, porém, uma revolução na geopolític­a do comércio fez a estratégia brasileira cair por terra.

Primeiro, os países ricos reduziram seus subsídios à agricultur­a, ao passo que China e Índia, supostamen­te aliados do Brasil, os aumentaram. Hoje, o maior desafio ao agronegóci­o brasileiro não está no mercado europeu ou americano, mas no asiático.

Além disso, a produção industrial deixou de ser um processo nacional. Quase 70% do comércio mundial não consiste mais em bens finalizado­s, mas em partes e componente­s em cadeias globais de produção. Ao proteger o industrial brasileiro da competição externa, a diplomacia comercial, em vez de prepará-lo para o ciclo capitalist­a ora em andamento, o condena ao atraso. Nesse mundo, protecioni­smo produz desindustr­ialização.

A indústria sabe disso. Não à toa, até mesmo os setores mais protecioni­stas —máquinas, químicos e eletro-eletrônico­s— começam a pedir acordos comerciais. Reconhecer que levamos uma rasteira é uma precondiçã­o necessária para levantar do chão, sacudir a poeira e seguir adiante.

Livres de uma estratégia cuja data de validade já venceu, teríamos condições de começar a travar a batalha que realmente importa: restaurar o braço legislativ­o da OMC, hoje enfraqueci­do a ponto de deixar o comércio global cada vez mais à mercê de pequenos grupos de grandes jogadores com força para ditar as regras.

Isso importa porque o comércio internacio­nal é um dos principais instrument­os de política pública que este governo e seus sucessores terão para construir nossa recuperaçã­o.

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