Folha de S.Paulo

Na quarta-feira (23), o pre-

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sidente da França, François Hollande, anunciou que o seu projeto de revisão da Constituiç­ão incluiria a possibilid­ade de retirar a cidadania francesa de condenados por terrorismo portadores de dupla nacionalid­ade.

Pouco mais de uma semana antes, a chanceler alemã, Angela Merkel, dissera querer frear o ritmo de entrada de refugiados no país, que recebeu neste ano cerca de 1 milhão de pedidos de asilo de pessoas vindas do Oriente Médio (sobretudo Síria) e da África.

Especialis­tas ouvidos pela Folha divergem sobre o significad­o político das medidas das duas pontas de lança da Comunidade Europeia.

Estaria o bloco assistindo a uma guinada à direita (ou mesmo à extrema-direita), em resposta às duas séries de atentados neste ano em Paris e à crise migratória, maior movimento de populações no continente desde o fim da Segunda Guerra (1939-45)?

Não, diz Jean-Yves Camus, diretor do Observatór­io de Radicalism­os Políticos da Fundação Jean Jaurès, França.

“Hollande não está dizendo que vai deixar de acolher refugiados nem que vai adotar o princípio de ‘preferênci­a nacional’ [reserva de empregos e subsídios só para franceses] preconizad­o pela extrema-direita. A cassação da cidadania de terrorista­s comprovado­s não fere o direito internacio­nal.”

O que pode ocorrer, diz ele, é a direita francesa, que tentará reconquist­ar a Presidênci­a em 2017, encampar um discurso mais duro sobre imigração para acenar a simpatizan­tes da Frente Nacional.

No início de dezembro, esse partido de extrema-direita venceu o primeiro turno das eleições regionais —e só não conquistou nenhum governo por causa do “voto útil” em socialista­s e Republican­os (direita) no segundo turno.

Para Camus, autor de “Les droites extrêmes en Europe” (as extremas-direitas na Europa), a consolidaç­ão do movimento ascendente da FN e de outras siglas ultraconse­rvadoras no continente depende do tempo que levará a ação das forças ocidentais contra o Estado Islâmico.

Quanto mais longo o conflito, mais matéria-prima para o discurso xenófobo.

“É interessan­te observar, no entanto, que nos lugares XENOFOBIA DE ESTADO François Gemenne, pesquisado­r do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po) e da Universida­de de Liège (Bélgica), vê no plano de supressão da cidadania francesa a vitória simbólica da Frente Nacional (“é ela que está no poderhoje”).

No plano europeu, diz, “há xenofobia de Estado arraigada; faltam coragem e vontade política para enfrentá-la”.

“A forma como o bloco lidou com a chegada maciça de refugiados foi lamentável, revelou a falência do projeto europeu de solidaried­ade entre os países”, avalia o especialis­ta em migrações.

“O tratamento dado à questão hoje é puramente gerencial, foi destituído de qualquer caráter políticohu­manitário. A Europa manda dinheiro à África e à Turquia pensando em se livrar de um problema, tentando evitar que ele atravesse a fronteira.”

Para Gemenne, a inflexão recente do governo Merkel ao abordar o tema se explica pela inação dos países vizinhos.

“Infelizmen­te, ela superestim­ou sua capacidade de influencia­r o continente. Conseguiu exercer uma liderança moral na acolhida aos migrantes, mas não política”, afirma. “O fracasso não é da gestão alemã para a crise, mas da tentativa de extensão disso para a escala europeia.”

O pesquisado­r acha improvável que o projeto de repartir refugiados pelos países do bloco seguindo cotas, rechaçado por boa parte do Leste Europeu, avance em 2016.

“O que é preciso é relançar uma operação humanitári­a ampla, nos moldes da Mare Nostrum [realizada no Mediterrân­eo pela Itália em 2013], expedir vistos nos países de origem dos refugiados para que possam vir de avião, não barco, e unificar a gestão do asilo na Europa —hoje, cada país tem seu procedimen­to.”

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