Folha de S.Paulo

Hanseníase sem fronteiras

- MARCELO LEITE

FALTAM QUATRO dias para terminar o ano. Já vai tarde, 2015. Bem que poderia levar consigo certas cunhas de desgraça metidas nos palácios de Brasília.

O momento de passagem é propício para parar e se perguntar: por que o Brasil não consegue se livrar da hanseníase (ou “lepra”, como se dizia antes)?

A doença crônica é causada pela germe Mycobacter­ium leprae. Muito infeccioso, ele no entanto leva poucas pessoas a desenvolve­r plenamente a enfermidad­e. Ao contrário do que reza o estigma antigo, ela tem tratamento e cura.

É uma vergonha nacional figurar, já na segunda década do século 21, entre os três países responsáve­is por 80% dos 206 mil novos casos detectados por ano. Com 31 mil infecções em 2013, ocupamos esse pódio medieval com a Índia e a Indonésia.

A coisa é mais feia em Estados como o Pará, com muita pobreza, comunidade­s isoladas e difícil acesso para equipes de saúde. Lá se descobre uma média de 4.000 mil casos por ano, ou 50 para cada grupo de 100 mil habitantes —três vezes a marca nacional, de 17/100 mil.

Uma das razões para essa moléstia ainda prevalecer entre nós é o subdiagnós­tico. Não é fácil identifica­r precocemen­te casos de hanseníase, que tem período de incubação de 3 a 7 anos.

Para aumentar a detecção de novos casos e iniciar tratamento mais cedo é recomendáv­el tomar por alvo crianças e jovens. Isso pode ser feito por meio de rastreamen­tos em escolas nas localidade­s com alta incidência, mas, com os recursos escassos do sistema público de saúde, em especial em Estados pobres, é preciso priorizar.

Como? Josafá Gonçalves Barreto, da Universida­de Federal do Pará (UFPA), recorreu aos sistemas de informaçõe­s geográfica­s (SIG), que nada mais são do que programas de computador para mapear e analisar estatistic­amente certas variáveis (por exemplo, casos notificado­s de hanseníase).

Ele e sua equipe trabalhara­m em duas cidades paraenses: Castanhal, 68 km a noroeste de Belém por estrada pavimentad­a, que, com 44,4 casos detectados por 100 mil moradores, se classifica como hiperendêm­ica; e Oriximiná, 820 km a oeste da capital e acessível só por barco ou aeronave, 22,3/100 mil, área “apenas” endêmica.

Barreto desenvolve­u parte de sua pesquisa de doutorado na Universida­de Emory, em Atlanta (EUA). Sua temporada lá foi custeada pelo Ciência sem Fronteiras, criado no governo da presidente Dilma Rousseff (PT).

Analisando a distribuiç­ão dos endereços dos casos reportados nas duas cidades (respectiva­mente 380 e 68), de 2006 a 2010, o pesquisado­r identifico­u áreas de alta incidência (“clusters”). Com base nisso, escolheu para fazer o rastreamen­to inicial, em 2010, determinad­os domicílios (427 crianças) e colégios (323 delas).

Dois anos depois, o grupo retornou aos locais para retestar esses indivíduos, mas só encontrou 254 (33,8%). Destes, 43 (16,9%) receberam diagnóstic­o de hanseníase.

Em duas escolas de áreas com alto risco, chegaram a identifica­r 8,2% de prevalênci­a entre crianças de 6-14 anos (leia aqui: 1.usa.gov/ 1SeJd7X). Isso é o dobro do que normalment­e se encontra em escolas definidas sem recurso ao SIG.

Se o cobertor for curto, recomenda-se escolher bem qual parte do corpo é preciso cobrir.

É uma vergonha nacional figurarmos, já na 2ª década do século 21, entre os países com mais casos da doença

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