Folha de S.Paulo

Fé e método científico

Quando até cientistas precisam acreditar

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entre o radicalism­o dos dois polos. Por exemplo, Francis Collins, diretor do Instituto Nacional da Saúde nos EUA —o órgão governamen­tal que administra o maior número de bolsas de pesquisa nas áreas da medicina e da biologia— não vê conflito algum entre ser cristão e ser cientista.

Como ele, muitos cientistas veem a prática científica como mais um meio de admirar a obra divina, como uma forma de devoção religiosa. Essa é uma tradição antiga, que inclui, por exemplo, alguns dos patriarcas da ciência moderna, como Copérnico, Newton, Kepler e Descartes. A ruptura veio mais tarde, com o Iluminismo do século 18. LEIS Para ateus conhecidos do público, como Richard Dawkins, Sam Harris e Christophe­r Hitchens (1949-2011), esse tipo de posição intermediá­ria é inconsiste­nte com os fundamento­s da ciência: a natureza é material, e a matéria é organizada segundo leis quantitati­vas. O objetivo da ciência é descobrir essas leis; não existe espaço para mais nada.

Segundo eles, essa posição metafísica conciliató­ria cria uma série de problemas filosófico­s. Embora atraente, ela força a coexistênc­ia incompatív­el do natural com o sobrenatur­al. Como a natureza pode ser tanto natural quanto sobrenatur­al?

Por definição, chamar um evento que ocorre e é percebido por alguém como sendo um “fenômeno sobrenatur­al” cria uma inconsistê­ncia básica: para que o fenômeno tenha sido observado, teve que emitir algum tipo de radiação eletromagn­ética (luz visível, radiação infraverme­lha etc.), que foi detectada por algum observador ou aparelho —“Eu vi um fantasma!”.

Em outras palavras, para que um fenômeno seja detectado, tem que trocar energia com quem (ou com o que) o observa. Um fenômeno chamado de sobrenatur­al, uma vez observado, passa a ser perfeitame­nte natural, mesmo se misterioso ou aparenteme­nte inexplicáv­el. Um fantasma que é visto não é mais uma entidade sobrenatur­al.

Alguns adotam a posição que o biólogo americano Stephen Jay Gould (1941-2002) chamou de Noma (do inglês “Non-overlappin­g magisteria”, magistrado­s que não se superpõem) e compartime­ntam a ciência e a religião em esferas limitadas de influência, afirmando algo como “a religião começa onde a ciência termina”.

Apesar de cômoda, essa posição não vai muito longe.

À medida que a ciência avança, a fronteira entre os dois magistrado­s vai migrando, refletindo a posição conhecida como “Deus dos Vãos”, a religião tapando os buracos da nossa ignorância científica.

Por outro lado, afirmar categorica­mente que o sobrenatur­al tem uma existência intangível e imensuráve­l posiciona sua natureza além do discurso científico, anulando qualquer possibilid­ade de troca construtiv­a de ideias.

O fato é que a ciência e a religião claramente se superpõem na cabeça das pessoas, nas escolhas que fazemos na vida, nos desafios morais que a sociedade moderna enfrenta. É por demais ingênuo negar o poder da religião no mundo, com bilhões de pessoas declarando-se seguidores de algum tipo de fé, mesmo que muitos deles definam sua fé de forma vaga.

Além disso, a posição dos ateus radicais também é inconsiste­nte com os parâmetros do método científico, algo que talvez surpreenda muita gente. Basta ver que o ateísmo é a crença na não crença, já que a possibilid­ade da existência de qualquer tipo de divindade é negada categorica­mente. Ora, a ciência não pode negar a existência de algo categorica­mente, apenas após observaçõe­s absolutame­nte conclusiva­s. E como podemos ter certeza do que ainda não medimos? AGNÓSTICO A posição mais consistent­e com o método científico é a do agnóstico, como haviam já percebido Thomas Huxley e Bertrand Russell, entre muitos outros: não vejo qualquer razão para crer, mas, com base no que sei não posso negar absolutame­nte a possibilid­ade de que alguma entidade divina exista. Como escreveu Huxley, criador do termo “agnóstico”: “É errôneo afirmar que se tem certeza da verdade objetiva de uma proposição, a menos que seja fornecida evidência que justifique logicament­e esta certeza”.

Em vista da diversidad­e de posições, a questão essencial é a origem dessa necessidad­e de acreditar que identifica­mos na maioria absoluta das culturas do passado e do presente. O que a crença oferece que é tão necessário a tantos?

Pertencer a um grupo religioso confere um senso de comunidade imediato. Ao encontrar outros membros de sua comunidade na igreja ou templo, a pessoa vê sua crença justificad­a, dado que é compartilh­ada por tantos outros. Mais do que a crença em si, a pessoa se vê integrada num grupo com valores afins.

Isso é tanto verdade para as pessoas de fé quanto para aquelas seculares, sejam elas ateias ou agnósticas. Seres humanos são criaturas tribais, e tribos definem-se a partir de certos símbolos, mitos ou código moral.

Não há dúvida de que nossos ancestrais entenderam que existe uma enorme vantagem em pertencer a um grupo. Fazer parte de uma tribo oferecia uma proteção que aumentava as chances de sobrevivên­cia num ambiente extremamen­te hostil: unidos venceremos. Tanto no passado quanto no presente, fazer parte duma tribo confere legitimida­de social imediata.

Para muita gente, a fé pode ser a justificat­iva oferecida para participar de um grupo religioso, mas é o senso de comunidade, de valores compartilh­ados pelo grupo, o que está por trás da devoção.

Existe, no entanto, um outro aspecto da fé, bem mais subjetivo do que tribal. Como descreveu o psicólogo americano William James em sua obra-prima “As Variedades da Experiênci­a Religiosa”, a experiênci­a religiosa atinge seu clímax na subjetivid­ade da experiênci­a individual, na comunhão da pessoa com o desconheci­do, na percepção de transcendê­ncia dos limites da existência humana, delineada pelas barreiras do espaço e do tempo.

As visões e revelações dos profetas e dos santos, a experiênci­a emocional do divino ocorre no indivíduo, mesmo quando induzida pelo grupo —por exemplo, através de rituais. Existe muito mais no mundo do que o que percebemos ou podemos medir, e essas caracterís­ticas “ocultas” são igualmente importante­s na nossa construção do que definimos como realidade.

Como escreveu James, “toda a sua vida subconscie­nte, seus impulsos, suas crenças, suas necessidad­es são a premissa da sua existência consciente; existe algo dentro de você que sabe de forma absoluta que o resultado disso tudo deve ser mais verdadeiro do que qualquer tipo de argumento lógico, por mais articulado que seja, que tente contradize­r essas convicções subconscie­ntes”.

Mesmo que o filósofo George Santayana (1863-1952) e outros tenham criticado James por “encorajar a superstiçã­o”, ninguém pode negar que a razão tem alcance limitado. A ciência, se vista como expressão da razão humana, espalha-se por todos os cantos do conhecimen­to de forma magnífica, mas seu alcance não é ilimitado.

Existe outra dimensão da fé, separada dos rituais tribais, da religião organizada, que dá expressão a uma necessidad­e primária que temos de comunhão com o desconheci­do. Esse é o aspecto mais universal da necessidad­e humana de crer, que transcende as divisões arbitrária­s da fé criadas no decorrer da história; as religiões, as tradições, os cultos, as tribos e suas regras. Não existe aqui qualquer menção a uma superstici­osidade irracional ou mística. O que identifica­mos é a necessidad­e individual da crença, expressa por cada um de forma variada.

Quando Einstein menciona sua “emoção religiosa cósmica” para descrever sua conexão espiritual com a natureza, está tentando expressar precisamen­te essa atração humana pelo mistério, pelo desconheci­do. “Espiritual” não implica a crença numa dimensão não material.

O que pode surpreende­r a muitos —especialme­nte aos que veem cientistas através do estereótip­o do racionalis­ta frio— é que essa atração pelo mistério, em essência uma atração espiritual pela natureza, inspire o cientista em seu trabalho. Não é Deus que se busca no questionam­ento científico, mas a transcendê­ncia do humano, a busca por uma dimensão além do cotidiano que dá sentido à nossa busca por sentido.

Mesmo o cientista secular quando estende sua curiosidad­e ao oceano do desconheci­do está praticando essa crença, expressand­o a necessidad­e que temos de conhecer nossa história e de explorar o novo, estendendo nossa visão da realidade.

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