Folha de S.Paulo

Um imbróglio confuso

Um pouco d’“O Sumiço”

-

um tanto quanto distraído. Fumou um cigarro, conquanto incomodado com o odor. Tossiu.

Ligou o rádio: após uma música afro-cubana, tocaram um bóston, aí um tango, aí um fox, aí um cotilhão arranjado ao gosto do dia. Dutronc cantou algo do Lanzmann, Barbara, uma canção do Aragon, Stich-Randall, uma ária da “Aída”.

Haja vista o susto súbito do Antoin, havia tirado um cochilo. Anunciavam no rádio: “Notícias do dia”. Não havia um único fato com alguma importânci­a. Valparaíso: duas dúzias mais um ou dois mortos na inauguraçã­o dum viaduto; Suíça: Norodom Sihanouk não irá a Washington; Matignon: Pompidou faz proposta aos sindicatos visando a uma nova organizaçã­o do status quo, mas fica só na palavra. Biafra: conflitos raciais; Conakry: o assunto foi um putsch. Um tufão ia arrasando Nagasaki, um tornado batizado com um antropônim­o gracioso (Amanda) ia ficando mais próximo das ilhas Tristão da Cunha, das quais a população ia saindo graças ao auxílio da Marinha.

Roland-Garros, por fim: numa partida da Copa Davis, Santana havia ganhado do Damon por 4 a 1.

Apagou o rádio. Agachou na alfombra, tomou inspiração, forçou uns cinco ou mais apoios na musculatur­a torácica, mas não tardou a ficar cansado. Aprumou as costas ainda no chão, fatigado, fixando com um olhar lasso o curioso croqui a surgir ou sumir na alcatifa Aubusson, a variar a partir das formas organizada­s por sua visão:

Assim via, hora ou outra, uma argola inacabada com um traço horizontal alongando a sua ponta: quiçá como um G maiúsculo visto numa poça d’água.

Ou, branco no branco, surgida numa bruma cristalina, a altiva figura dum monarca brandindo um arpão com uma ponta tripla.

Ou, por um átimo, surgindo du- ma linha sob mais uma sob mais uma, um croqui aproximati­vo, insatisfat­ório: voltas avultadas, contornos bastardos a rascunhar, num vão arroubo da imaginação, a Mão tridáctila dum Sardônico rindo às gargalhada­s.

Ou, como uma imposição, sim, punha ali a figuração dum borrachudo do tórax fuliginoso, no qual havia uma articulaçã­o trística dum branco próximo ao lirial.

Ficava irritado. A visão da alfombra fazia um mal alvoroçado­r para Vagol. Às voltas com tanta ilusão ditada por sua imaginação, cria avistar um ponto mais avultado, um foco ignorado, o qual, por muito pouco, por um triz, jamais podia alcançar.

Continuava. Contumaz. Fascinação da qual não podia abrir mão. No fundo da alfombra, como tudo fazia supor, havia um fio a tramar o obscuro ponto Alfa, um grão do Todo Grandioso dando profusas mostras do Infinito Cósmico, ponto primordial do qual, súbito, surgiria um panorama total, abismo com raio nulo, campo insabido do qual ia traçando o inaudito litoral, cujo contorno insinuado ia cobrindo com os próprios passos, turbilhão, altos muros, prisão, bordas galgadas mas nunca transposta­s...

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil