Folha de S.Paulo

DO OUTRO LADO DO RIO

Antigo hotel na Freguesia do Ó abriga usuários e ex-usuários de drogas que deixaram a cracolândi­a e tentam retomar a vida

- Sandra (nome fictício), 44, que agora mora na zona norte DE SÃO PAULO

Em quatro anos, Sandra (nome fictício), 44, perdeu na cracolândi­a o quase nada que tinha. Ao longo da vida, perdeu mais. De seus 12 filhos, sete morreram. Há quatro meses, a mulher, de cerca de 1,75 m, deixou o centro de São Paulo. Pesava, então, 52 kg.

O caminho dela é o mesmo que outros 37 usuários fizeram. Dois anos após criar o programa De Braços Abertos, a gestão Fernando Haddad (PT) tenta distanciar os participan­tes do tráfico de drogas.

A primeira experiênci­a teve início há cerca de um ano: 38 usuários com maior autonomia em relação ao vício ocupam o mesmo prédio de um antigo hotel do “lado de lá” do Tietê, bem no meio da Freguesia do Ó, zona norte.

Sandra não deixou de usar crack. Deixou, isso sim, de fumar as cerca de 25 pedras diárias. “Não gosto de mentira. Minhas drogas hoje são cigarro, cachaça e, de vez em quando, uma pedra”, afirma.

Ela garante não se ver mais usando crack no futuro e diz não perder um dia de trabalho na varrição de ruas.

“A expectativ­a das pessoas é que eles [usuários] deixem de consumir a droga, mas esse não é o foco do programa, que é a reinserção social”, afirma a secretária municipal de Assistênci­a e Desenvolvi­mento Social, Luciana Temer. ‘FUMEI O APARTAMENT­O’ Pelas escadas do hotel de três andares da Freguesia do Ó, as histórias sobre a cracolândi­a se misturam.

Maquiador e cabeleirei­ro, Ezequiel (nome fictício), costumava viver entre artistas. Por mais de dez anos, diz ter trabalhado nos bastidores da Globo e do SBT. Morava em um espaçoso apartament­o na avenida São Luís, no centro. Os últimos cinco anos foram na cracolândi­a.“Eu e meu pareceiro fumamos o apartament­o e uma casa que eu tinha em Minas”, afirma.

O parceiro morreu. HIV positivo, Ezequiel diz que depois de chegar ao hotel passou a cuidar melhor da saúde.

No dia em que a Folha o entrevisto­u estava com febre. Outro morador se preparava para levá-lo ao hospital.

Entre quem o ajuda também está Francisca Calixto, 48. Ela, que nunca usou drogas e recentemen­te quis ir à cracolândi­a “para saber como era e entender eles melhor”, é a mais respeitada por ali.

Administra­dora e faz-tudo do local, Francisca resolveu permanecer no emprego quando o dono do hotel o alugou para a prefeitura. “Aqui eu trabalho com eles de portas abertas”, diz ela, que mora em um dos apartament­os com as duas filhas.

É ela que controla as regras do local. Nada de brigas, confusões e sujeira nas áreas comuns. Na sua frente, ninguém se atreve a puxar um cachimbo e usar a pedra. “Eles vão para dentro do quarto deles e lá fazem o que quiserem. Fora de lá, não”, sentencia a mulher de voz calma e olhar atencioso.

Francisca conseguiu dos moradores daquele prédio o tipo de respeito que não se impõe, mas se conquista.

Paciência ela também parece ter de sobra. “Eles chegam e aos poucos vão vendo que também são donos do local. Mas até aceitarem que a vida deles mudou vai tempo”, afirma. (EMILIO SANT’ANNA)

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