Folha de S.Paulo

OPINIÃO Preço de agir fora da legalidade na Lava Jato é alto demais

- RONALDO LEMOS

FOLHA

É intoleráve­l este governo. Mas é também intoleráve­l que no afã de se encontrar um caminho para seu ocaso, desrespeit­e-se a lei e a Constituiç­ão. Ninguém impede um país de se tornar uma Coreia do Norte adotando práticas da Coreia do Norte. Causa preocupaçã­o, assim, a decisão do juiz Sergio Moro de divulgar publicamen­te os grampos telefônico­s.

A lei de intercepta­ção telefônica em vigor no Brasil (lei 9.296 de 1996) obriga o juiz a manter as escutas em sigilo.

O texto da lei não poderia ser mais claro, dizendo em seu artigo 8º: “A intercepta­ção de comunicaçã­o telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservand­o-se o sigilo das diligência­s, gravações e transcriçõ­es respectiva­s”. Isso não foi respeitado.

A situação agrava-se ainda mais na medida em que parte das escutas foram feitas após determinaç­ão judicial para que a intercepta­ção cessasse. Essas escutas não são sequer admissívei­s nos autos. São o que na doutrina jurídica se costuma chamar de “fruto da árvore envenenada”: prova obtida sem amparo de autorizaçã­o legal.

Limites aplicam-se também a escutas envolvendo cargos com foro privilegia­do ou conversas protegidas pelo sigilo entre advogado e cliente. Diante da gravidade da crise política, esses direitos podem parecer “menores”. Mas não são.

Como a maioria dos brasileiro­s, tenho grandes expectativ­as com relação à operação Lava Jato. No entanto, agora que a operação chega a um momento crítico, ela não pode sucumbir à tentação de que “os fins justificam os meios”. A legalidade é um valor essencial em momentos de crise. O preço de agir fora dela é alto demais.

A questãotra­nscende o Brasil. Um dos temas mais importante­s do mundo contemporâ­neo é justamente os limites do uso da tecnologia para fins de vigilância. Nossos celulares e computador­es não são meros produtos de consumo. São as mais poderosas ferramenta­s de escuta já criadas.

Essa é uma das maiores ameaças ao progresso humano. No artigo “Surveillan­ce and the Creative Mind” (A Vigilância e a Mente Criativa), o especialis­ta em política externa Tim Ridout diz que “na história, aqueles que questio- nam o saber tradiciona­l ou as estruturas existentes de poder invocam o desejo de vingança do status quo, como Galileu, Martin Luther King, ou Ai Wei Wei.

Edward Snowden costuma dizer que a defesa contra a vigilância é a própria tecnologia. Na visão dele, todos deveríamos adotar medidas técnicas para resguardar nosso sigilo. Considero essa posição derrotista. Em um contexto em que a tecnologia se torna onipresent­e, a principal forma de proteção contra a vigilância não pode ser “fogo contra fogo”, mas sim a lei.

RONALDO LEMOS

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