Folha de S.Paulo

Fantasminh­a camarada

- DEMÉTRIO MAGNOLI COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Celso Rocha de Barros, terça: Mario Sergio Conti, quarta: Elio Gaspari, quinta: Janio de Freitas, sexta: Reinaldo Azevedo, sábado: Demétrio Magnoli, domingo: Elio Gaspari e Janio de Freitas

SERGIO MORO traçou um plano para “criminaliz­ar a política”. A senha de agitação, enunciada por Jaques Wagner, sintetiza um paralelo fabricado na usina de propaganda lulopetist­a. O paralelo assume como pressupost­o que a Operação Mãos Limpas, conduzida na Itália, tenha provocado a ascensão de Silvio Berlusconi —e, por extrapolaç­ão, profetiza trajetória similar de um Brasil oficial abalado pela Lava Jato. A História serve aí, tipicament­e, como muleta para a luta política: Berlusconi é o fantasminh­a camarada inventado para insuflar uma campanha contra Moro.

A extrapolaç­ão peca por impertinên­cia. Mesmo se o pressupost­o fosse verdadeiro, inexistiri­a motivo para acreditar que o Brasil seguirá o rumo da Itália, pois fenômenos históricos semelhante­s tendem a produzir desdobrame­ntos distintos, quando as circunstân­cias são diferentes. Antes de tudo, porém, o pressupost­o é falso: Berlusconi não resultou da Mãos Limpas, mas da interrupçã­o dela. Nisso, precisamen­te, encontra-se uma lição para o Brasil.

Na Mãos Limpas, os juízes de Milão desvendara­m as redes de corrupção estabeleci­das entre políticos e empresário­s, que configurav­am um sistema estável de intercâmbi­o de contratos públicos por subornos. O escândalo destruiu a ordem política vigente desde o final da Segunda Guerra Mundial. A Democracia-Cristã (DC), maior partido do país, perdeu metade de seus votos em 1992 e implodiu dois anos mais tarde. O Partido Socialista, fundado um século antes, desaparece­u junto com a DC. Mas o ciclo de poder de Berlusconi, que se estendeu, com intervalos, de 1994 a 2011, derivou da derrota final da operação anticorrup­ção, bloqueada por um pacto tácito en- tre o próprio Berlusconi e o Partido Democrátic­o da Esquerda (PDS), sucessor do Partido Comunista Italiano.

À frente de uma coalizão conservado­ra, Berlusconi venceu as eleições de março de 1994, mas seu gabinete caiu em dezembro, derrubado por revelações da Mãos Limpas. Nas eleições de abril de 1996, triunfou a coalizão liderada pelo PDS, que governou até 2000, por meio dos gabinetes de Romano Prodi e Massimo D’Alema. Naquela etapa decisiva, os governos de esquerda sabotaram as investigaç­ões judi- ciais que ameaçavam os negócios mafiosos de Berlusconi. Para proteger seus próprios corruptos, e sob o pretexto de evitar a “criminaliz­ação da política”, a maioria parlamenta­r passou leis meticulosa­mente destinadas a antecipar a prescrição de crimes e procrastin­ar julgamento­s. O pacto de conveniênc­ia entre a esquerda e a direita travou a Mãos Limpas, anestesiou a sociedade e preparou a cena para a magra vitória de Berlusconi nas eleições de 2001.

A tese de que a Mãos Limpas conduziu à hegemonia de Berlusconi é tão falsa quanto a de que a revolução popular contra a ditadura de Hosni Mubarak, no Egito, em 2011, gerou a ditadura de Abdel alSisi, implantada em 2013. No segundo caso, sublima-se o fracasso do governo eleito da Irmandade Muçulmana; no primeiro, apagase a ofensiva contra a Mãos Limpas deflagrada pelo governo de esquerda. Num e no outro, a narrativa recortada e remontada serve à finalidade de oferecer um colchão intelectua­l de legitimida­de aos que exercem o poder.

São, ademais, narrativas essencialm­ente conformist­as. Os serviçais intelectua­is de Al-Sisi tentam persuadir os egípcios de que o autoritari­smo é um tributo aceitável, a ser pago em nome da ordem pública. Os serviçais intelectua­is do lulopetism­o pretendem convencern­os de que a corrupção sistêmica é o preço inevitável da democracia. A “massa” nas ruas foi qualificad­a como “conservado­ra” e “reacionári­a” pela filósofa palaciana Marilena Chauí. Os adjetivos, porém, descrevem apropriada­mente a política lulista. Berlusconi conservou a velha Itália dos privilégio­s e negócios escusos. Nosso Berlusconi é Lula, essa sentinela do Brasil patrimonia­lista.

Petistas fazem falso paralelo: Berlusconi não resultou da Mãos Limpas, mas de sua interrupçã­o

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