Folha de S.Paulo

Autora somali trata da mulher na ditadura

Inspirada em histórias da avó, Nadifa Mohamed reproduz ciclo de violência durante o regime militar de Siad Barre

- NATÁLIA PORTINARI

Escritora explica que a repressão destruiu relações femininas, o que levou mulheres a agirem como espiãs

Aos nove anos, a menina Deqo é punida por errar numa apresentaç­ão de dança em um comício do ditador somali Siad Barre. Ela não é a única a sofrer com a repressão da ditadura em vigor em 1987. “O Pomar das Almas Perdidas”, de Nadifa Mohamed, narra a dor de três mulheres de diferentes gerações durante o período.

Após Deqo ser espancada, Kawsar, uma senhora de quase 60 anos, tenta resgatá-la e acaba presa. É igualmente agredida por uma policial, Filsan, que, por sua vez, segue a sina das mulheres da narrativa e sofre em um ciclo de violência em todas as suas formas.

A guerra civil na Somália (1986-1992) acabou com duas décadas de ditadura militar na região e motivou a migração da família da autora para a Inglaterra na década de 1980.

“Quis escrever sobre mulheres e pensar em como eu teria sido afetada se tivesse ficado na Somália”, diz Nadifa, em entrevista à Folha.

Seu pai, marinheiro, viajou para o Reino Unido com a família em 1986 e decidiu não voltar. Expatriada desde os cinco anos, Nadifa fez faculdade de história e política na St. Hilda’s College, vinculada à Universida­de de Oxford, e se tornou escritora.

O seu primeiro romance, “Black Mamba Boy” (2010), é uma adaptação da biografia de seu pai que, quando jovem, peregrinou o continente africano em busca de sua origem familiar.

A fórmula de resgate ancestral se repete no segundo livro. Dessa vez, Nadifa adaptou a história da avó, que, assim como Kawsar, quebrou a bacia e ficou paralisada. Após ser atropelada, fica sem assistênci­a durante a guerra.

O romance aborda os efeitos da ditadura militar na vida das mulheres, vítimas de violências específica­s dentro do regime: “Em uma sociedade patriarcal, uma das poucas coisas que as mulheres têm são redes de apoio entre elas. Na Somália, essas relações eram muito fortes. Mas a ditadura destrói qualquer rede que possa desafiar sua autoridade”.

Segundo a escritora, a quebra dessas relações levou muitas mulheres a virarem “espiãs do Estado”, denunciand­o as atividades de suas vizinhas e de suas famílias.

Isso explica por que personagen­s como a soldado Fil-

NADIFA MOHAMED

escritora san perderam seus laços comunitári­os. “Alguém como ela não é capaz de solidaried­ade genuína. Talvez ela não tenha sido ensinada a ser solidária, e sim a obedecer e suspeitar dos outros”, diz. NACIONALID­ADE Apesar de a Somália ser o cenário de suas obras e estar em seu sangue, Nadifa não se identifica como uma escritora somali —ela se sente inglesa após 29 anos fora do país natal. Especialme­nte porque a Somália hoje é um lugar completame­nte diferente do que ficou em sua memória afetiva. “Atualmente há mais conservado­rismo, mas as mulheres têm mais oportunida­des.”

Seu sucesso chegou ao país de origem, no entanto. Segundo a autora, “Black Mamba Boy” é o livro mais encomendad­o na prisão de Hargeisa, apesar de ainda não estar traduzido para o idioma local.

Ela agora trabalha no terceiro livro, sobre um marinheiro executadoi­njustament­e por um crime que não cometeu. Também é uma história real, que ela ouviu de seu pai.

“sociedade patriarcal, uma das poucas coisas que as mulheres têm são redes de apoio entre elas. Na Somália, essas relações eram muito fortes. Mas a ditadura destrói qualquer desafio a sua autoridade

AUTORA Nadifa Mohamed TRADUÇÃO Otacilio Nunes EDITORA Tordesilha­s QUANTO R$ 39,90 (296 págs.)

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Divulgação Nadifa Mohamed, autora de ‘O Pomar das Almas Perdidas’

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