Folha de S.Paulo

HQ de ‘Macunaíma’ é antropofág­ica a seu modo

Autores usam como referência­s versão cinematogr­áfica de 1969 e obras de modernista­s da Semana de Arte de 1922

- ÉRICO ASSIS

FOLHA

Em um trecho metalinguí­stico de sua adaptação de “Macunaíma” para os quadrinhos, os autores Angelo Abu e Dan X decidem que vão evitar referência­s à versão cinematogr­áfica do livro, de 1969, dirigida por Joaquim Pedro de Andrade e que tinha Grande Otelo no papel principal. Para compor o protagonis­ta, Abu e X inspiram-se em várias referência­s, tais como patuás, a pintura de Di Cavalcanti e o épico “Ramáiana”.

O resultado foi um indiozinho com “olhões de sagui desmamado” e “buchinho estufado”. Quando um dos quadrinist­as mostra o protótipo à esposa, o comentário dela os desespera: “A cara do Grande Otelo!”

O desespero logo passa, pois eles veem que o processo é inevitável. “Macunaíma em Quadrinhos” é antropofág­ica tal qual a obra literária em que se baseia: engole várias referência­s, mastigaas e “guspe” —como no linguajar do livro original— um panorama de histórias alinhavado apenas pela fantasia típica do folclore.

A diferença em relação ao original, evidenteme­nte, é que na adaptação estas histórias são contadas pelas imagens desenhadas, de forma que as referência­s que os autores precisam engolir são, sobretudo, visuais.

A versão para o cinema, apesar do comentário da primeira leitora, não é o prato principal dos autores. Suas re- ferências mais aparentes são a pintura modernista: não apenas Di Cavalcanti ou Anita Malfatti —colegas de Mário de Andrade na Semana da Ar- te Moderna de 1922—, mas também Tarsila do Amaral, Diego Rivera e Pablo Picasso.

Como é esperado das adaptações, a versão em quadri- nhos também mastiga o texto original e “guspe” trechos. A HQ tem três capítulos a menos que o livro, mas preserva a narrativa principal. Os primei- ros capítulos estendem-se para contar o nascimento e os primeiros anos de Macunaíma. A viagem do protagonis­ta a São Paulo com os irmãos Maanape e Jiguê, para reaver a pedra Muiraquitã do mascate Venceslau Pietro Pietra, é o cerne da HQ tal qual o livro.

Outra caracterís­tica que o quadrinho preserva com enorme fidelidade em relação ao original é o linguajar adotado por Mário de Andrade, que mescla o português culto a termos do tupi e do tupiguaran­i, assim como escrita fonética e outros recursos. MÚLTIPLOS ESTILOS O que é particular ao quadrinho é a variação no estilo de desenho, que toma rumos diversos ao longo das páginas. Embora alguns capítulos mantenham um grafismo consistent­e, há cenas como a em que Macunaíma e Maanape chegam ao tejupar de Pietro Pietra, nas quais tem-se a impressão que as páginas foram desenhadas por quatro ou cinco artistas. A impressão pode ser intenciona­l, mas causa certa estranheza.

Mário de Andrade dizia que havia escrito “Macunaíma” em seis dias. Os autores da adaptação certamente levaram mais tempo —e, com a obra pronta, tiveram que esperar meio ano pela entrada do texto em domínio público, no início de 2016. O resultado é uma interpreta­ção visual nova e interessan­te da obra, a começar pela belíssima ilustração de capa e quarta capa. AUTORES Angelo Abu e Dan X EDITORA Peirópolis QUANTO R$ 39 (80 págs.) AVALIAÇÃO muito bom

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Trecho da adaptação da obra de Mário de Andrade

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