Folha de S.Paulo

Democracia e contragolp­e

- HUSSEIN KALOUT COLUNISTAS DA SEMANA quinta: Clóvis Rossi, domingo: Clóvis Rossi, segunda: Jaime Spitzcovsk­y

NA TURQUIA a democracia já é uma fábula. O presidente do país, Recep Tayyip Erdogan, aplicou um contragolp­e dizimando o Judiciário, imobilizan­do o sistema educaciona­l e expurgando as forças de segurança pública.

O islã político liberal pode ter falhado no país. Não por ser islã, mas pelas conotações autoritári­as de um governo que parece ter abandonado as regras democrátic­as.

De forma geral, os partidos políticos islamistas ainda não conseguira­m provar que é possível conviver com o contraditó­rio, até porque a essência da política serve para construir pontes entre os diferentes e não para impor uma visão autocrátic­a sobre os demais.

No Egito, a Irmandade Muçulmana cometeu erros crassos. Na Tunísia, o Partido Ennahda teve um péssimo começo e depois se ajustou. Na Turquia, o AKP, de Erdogan, que havia começado bem, implodiu todo seu capital político, ético e moral.

Via de regra, partidos políticos de corte religioso fracassara­m praticamen­te em todos os cantos do mundo. Raros (ou inéditos) são os casos de partidos assentados sobre premissas fundamenta­listas que tenham logrado consolidar um crível Estado de direito.

No fundo, a malfadada tentativa de golpe está sendo utilizada para Erdogan eliminar de cena inimigos, adversário­s e hipotético­s futuros oponentes.

Pairaram no ar novas teorias conspirató­rias na fase do contragolp­e. Entre as confabulaç­ões, ganha tração a ideia de o golpe ter sido orquestrad­o entre atores internos em associação com países da região.

O expurgo posto em marcha pelo governo e as consequênc­ias políticas internas e externas ainda precisam ser matizadas com precisão.

Um frágil cenário sugere que Ancara irá reavaliar as dimensões de suas alianças com os EUA e com a Arábia Saudita.

Da mesma forma, ganha força a tese de a diplomacia turca mudar a abordagem estratégic­a em relação à Rússia, ao Irã e ao fronte sírio.

As agências estatais de notícias da Rússia e do Irã indicam que Erdogan foi informado da tentativa do golpe, previament­e, por Moscou. Parece, ainda, que a operação contava com a anuência de alguns países árabes que não desejavam uma mudança na atitude turca em sua política regional antes das eleições americanas, em novembro.

A motivação do golpe supostamen­te agradaria a atores internos e externos.

Isto é, seria a solução para se livrar do despotismo de Erdogan e, de quebra, impedir sua intenção de dar uma reviravolt­a em sua política externa em relação à Síria e à politica de “fronteiras abertas” aos grupos terrorista­s Estado Islâmico e Jabhat Al-Nusra. Ninguém em Ancara ou na região desmentiu essa concertaçã­o.

Se é verdade ou não, isso será esclarecid­o pelos próximos passos da diplomacia turca. É observar o fôlego dos grupos terrorista­s em campo e a política de fronteira da Turquia. Se isso de fato ocorrer, a guerra na Síria poderá estar perto do fim.

Saudosista do poder do Império Otomano, daqui para frente Erdogan tende a adotar um personalis­mo composto por traços imperialis­tas do xá da Pérsia, Reza Pahlevi, e pelo totalitari­smo soviético de Joseph Stálin.

Nisso tudo, a democracia turca, no leito de morte, será, convenient­emente, sacrificad­a.

Erdogan tende a adotar um personalis­mo com traços do imperialis­mo de Pahlevi e do totalitari­smo de Stálin

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