Folha de S.Paulo

Conti critica meu trabalho de maneira descontext­ualizada

- AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO psicanalis­ta e professor de filosofia do direito

FOLHA

No comentário “Os olhos, ah, os olhos”, de 5 de julho, Mario Sergio Conti critica o livro “A Resistênci­a ao Golpe de 2016” num texto que se limita a citar em tom depreciati­vo fragmentos do livro, descontext­ualizados e sem indicação de autoria.

Em duas linhas, sem citar o meu trabalho “O Juiz como Protagonis­ta do Espetáculo: a Paranoia como Metáfora para Pensar essa Posição”, ele assim pretende refutá-lo: “A caricatura aparece num ensaio que sataniza Sergio Moro. O autor tem a risível audácia de comparar o juiz paranaense ao paranoico clássico analisado por Freud, Daniel Schreber —aquele que, ao comer, jurava que engolia pedaços da língua...”.

Caracteriz­ar Schreber como “aquele que, ao comer, jurava que engolia pedaços da língua” é desconhece­r aquilo de que trata o famoso caso clínico de Freud. O que interessa a Freud e a mim, no meu artigo, são os traços estruturai­s da paranoia, como a “certeza absoluta e delirante; inacessibi­lidade à dúvida e à autocorreç­ão; falta de acesso ao princípio de realidade e à retificaçã­o racional; missão redentora que não raro se apresenta também como sagrada”. O delírio de Schreber consistia na crença de que era imperiosa sua transforma­ção em mulher para conceber filhos de Deus, fazendo nascer nova raça de homens para redimir a humanidade.

Só evoquei o detalhe de “engolir pedaços da língua”, um mero acidente alucinatór­io, para ilustrar a falta de acesso ao princípio de realidade. A certeza de que engolia partes da língua enquanto comia era tão inabalável que não adiantaria mostrarlhe­aoespelhoa­línguaínte­gra: ele engolira, sim, e se agora aparecia inteira, era por “milagre divino”. A certeza ficava preservada e quaisquer contra-argumentos eram ignorados.

Não afirmo que Moro seja um paranoico nesse sentido psicótico. Ao contrário, deixo claro que não considero que o seja. O seu “delírio” é de outra natureza. Mas também comporta a certeza prévia da culpa de acusados da prática de crime, ainda que muitas vezes sem prova cabal que sustente a convicção. O processo carrega desde a origem presunção de culpa.

Essa certeza prévia, como ocorria com Schreber, não ce- de diante de argumentos em contrário, e a partir dela são buscadas a todo custo as provas que pareçam corroborál­a, desprezand­o-se a presunção de inocência e o devido processo legal, aceitando-se “provas” obtidas ilegalment­e ou mediante o recurso a práticas semelhante­s à tortura, como o prolongame­nto da prisão provisória para pressionar o sujeito a fazer o “acordo” de delação, vazando-se, para a imprensa informaçõe­s obtidas mediante escutas ilegais, para induzir a opinião pública a pressionar os julgadores nas instâncias superiores a manterem as sentenças de primeira instância. O combate à corrupção serviria de justificat­iva para práticas judicantes abusivas.

Foi nesse contexto que tomei traços da paranoia como metáforas para pensar a atuação do juiz Moro e também do aparato chamado de força-tarefa que sustenta a prática desses atos abusivos e que abrange membros da PF, do Ministério Público Federal e da grande imprensa, com destaque às versões que se sobrepõem aos fatos nos noticiário­s da TV Globo.

Se o paralelo que fiz é risível, como diz o jornalista, isso é questão de ponto de vista. Afinal, todos podem rir ou chorar do que quer que seja. Se é audacioso, assumo a audácia de dirigir críticas a autoridade­s e sistemas de poder, se as julgar pertinente­s. AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO

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