Folha de S.Paulo

IDENTIFICA­ÇÃO

Romeno radicado em Paris com obra política e irônica vinculada ao teatro do absurdo, dramaturgo Matei Visniec vira xodó de realizador­es brasileiro­s

- LUCAS NEVES COLABORAÇíO PARA A FOLHA, DE PARIS

Vinculado ao teatro do absurdo, dramaturgo romeno Matei Visniec é acolhido no Brasil

Radauti, cidade romena de 20 mil habitantes, é rasgada de uma ponta à outra por uma estrada de ferro.

Não parece gratuito, portanto, que um filho ilustre, o dramaturgo e poeta Matei Visniec, 60, seja um homem partido ao meio, equilibran­do-se entre dois idiomas (o materno e o francês), duas carreiras (as de jornalista e de autor) e dois sistemas político-econômicos (o comunismo soviético e o capitalism­o globalizad­o).

Onde não há sinais de divisão é na acolhida brasileira a Visniec: desde 2012, quando a É Realizaçõe­s passou a editar a obra do romeno naturaliza­do francês, proliferam montagens de suas peças pelo país.

Em 2014, a atriz Regina Duarte pinçou histórias da coletânea “Cuidado com as Velhinhas Carentes e Solitárias” para compor “A Volta para Casa”, sua segunda direção. Um ano antes, o baiano Marcio Meirelles encenou “Espelho para Cegos”, concebido a partir de “Teatro Decomposto...”. Desde então, fez outras oito produções visniequia­nas.

“Decidi montar na primeira página [que li]. Foi fulminante”, diz o diretor. “Há nele uma visão ao mesmo tempo cruel e realista da nossa experiênci­a com o amor, a morte e o poder. As palavras são tijolos que voam através de vidraças em câmera lenta.”

Essas armas retóricas, Visniec as lapidou sob a ditadura de Nicolae Ceausescu (196589). O regime fazia jogo duplo: liberava suas antologias poéticas, mas barrava as peças. RENASCIMEN­TO “No teatro, a crítica social era mais direta”, diz o autor à Folha. “O poder não tinha medo de um cidadão que lesse uma obra contestado­ra sozinho. Já o teatro era mais perigoso: a emoção coletiva poderia descambar para a revolta.”

Banido em 1987, o autor foi para Paris, onde pediu asilo político e passou a trabalhar na Rádio França Internacio­nal (e permanece ali até hoje).

“Mais do que a interdição oficial, o que me amedrontav­a era a autocensur­a, a perspectiv­a de me transforma­r em ‘colaborado­r’ de um poder totalitári­o”, conta Visniec, que, uma vez em Paris, passou escrever em francês. “Queria renascer em outra língua.”

Renascimen­to que não rimou com esquecimen­to. Liberado da mordaça de Ceausescu, Visniec soltou nos palcos o bestiário do aparelho repressivo soviético.

A fauna de “Ricardo 3º Está Cancelada” (2001) inclui agentes da Seção de Identifica­ção de Silêncios Suspeitos e do Serviço de Limpeza Ideológica de Superfície (referente a cenários, figurinos e adereços). Todos submetem o encenador russo Vsevolod Meyerhold (1874-1940) —perseguido por Stálin— a interrogat­órios surreais, enquanto ele tenta montar Shakespear­e.

Já “A História do Comunismo Contada aos Doentes Mentais” (1998) retrata um hospital psiquiátri­co de Moscou cujos pacientes só estão ali por “padecerem” de aguda descrença nos ditames de Stálin.

Visniec tampouco reza pela cartilha capitalist­a. Seu “Paparazzi ou A Crônica de Um Amanhecer Abortado” (1997), montado no ano passado no Rio, flagra a indiferenç­a com que um grupo recebe a notícia da iminência do apocalipse: o fim do mundo que se dobre ao hedonismo desarvorad­o.

Outro traço distintivo do romeno são jogos metalinguí­sticos; volta e meia ele empurra para a cena colegas de ofício, encurralad­os ali por personagen­s desgostoso­s com a própria sorte. É assim que, em “O Último Godot” (1987), Beckett atura as lamúrias daquele que todos esperam há décadas.

Tête-à-tête não menos efusivo tem o autor de “Tio Vânia” com suas criaturas em “A Máquina Tchékhov”.

A produção literária do romeno também brinca com figurões das letras. Em um de seus romances, os fantasmas de Hemingway, Camus, Borges e Ionesco (este um dos artífices do teatro do absurdo, ao qual a crítica costuma filiar Visniec) desfilam em meio a personagen­s encarnados.

E há ainda mais na arca sui generis do escritor: anões de jardim que se põem a falar, borrachas gigantes que apa- gam tudo o que lhes cruza o caminho, palavras que aprontam um motim numa livraria...

A inspiração para esse mundo delirante vem das obras surrealist­as e dadaístas que Visniec devorou na juventude. Mas também do realismo fantástico latino-americano. “García Márquez, Fuentes, Vargas Llosa, Sabato e outros alimentara­m um certo gosto pelo paradoxo”, afirma. FEBRE TROPICAL Mas por que seu teatro virou coqueluche nos trópicos? Visniec palpita: “Os dois países se encontram na mesma etapa histórica. Saíram há pouco de ditaduras. É agora que a esperança existe”.

Para Edson Filho, dono da É Realizaçõe­s (pela qual saíram 17 volumes de peças de Visniec, além do romance “O Negociante de Inícios de Romance”), a escrita do romeno “reflete o que os brasileiro­s sentem neste momento de degradação de valores”. O editor tem na manga outras três peças e um segundo romance do autor.

“Não é à toa que ele esteja sendo muito bem absorvido por aqui”, completa José Roberto Jardim, que dirige “Adeus, Palhaços Mortos!” (leia ao lado). “Ele fala muito de polarizaçã­o, e vivemos uma polarizaçã­o de ideologias.”

A atriz e diretora Clara Carvalho, que assinou com Denise Weinberg uma montagem de “A Máquina Tchékhov”, faz um paralelo entre a “cultura feérica, periférica e bagunçada” do Leste Europeu de Visniec e a brasileira.

“O caos e a falta de respeito são semelhante­s. Já pensou fazer uma peça sobre o atendiment­o no SUS? O Matei faria muito bem”, diz ela.

Rodrigo Spina, diretor de “Aqui Estamos com Milhares de Cães Vindos do Mar”, que a Cia. Os Barulhento­s criou a partir de “Cuidado com as Velhinhas...”, acredita que o autor conversa com “a cegueira para ver e ouvir o outro” do Brasil atual. “Ao questionar o que restou de sua pátria, ele retrata a fase em que vivemos.”

Justamente para reinstaura­r alguma ordem no mundo é que a literatura se faz necessária, arremata Visniec: “É preciso escanear a dor do mundo. Expor o lugar dos ferimentos pode ajudar a tratá-los”.

O homem partido ao meio de Radauti encontrou o seu unguento.

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Visniec em frente à Rádio França Internacio­nal, em Paris

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